Carlos Pronzato*
cineasta documentarista, diretor teatral, poeta e escritor.
cineasta documentarista, diretor teatral, poeta e escritor.
Formado em Direção Teatral pela UFBA (1993),
com pós - graduação em Teoria do Teatro
Contemporâneo pela UFRGS, (2002).
Todo documentário é político, todo filme é político, toda palavra é política, todo gesto é político. Ainda que não aborde temas políticos, como os conhecemos. Inclusive a omissão destes temas não deixa de se constituir numa postura política. Partindo dessa óbvia premissa podemos, agora, defender o título destas linhas: documentário de intervenção política. A intervenção poderia ser artística, e também é, já que o documentário é uma simbiose dos âmbitos do real e da ficção, através da qual elementos do repertorio artístico, como a música, as ilustrações, os enquadramentos, os textos por ventura utilizados, as imagens de cobertura e outros elementos podem ser acoplados, na montagem, ao “estritamente” documental, criando assim uma obra híbrida entre o fato retratado e a mirada única, subjetiva e intransferível do diretor, elemento de interferência primordial, que, muito além da câmera, transforma o real numa experiência subjetiva. Dito isto, abordemos a prática do documentário que pretende intervir politicamente na realidade, entendendo por política, neste caso especifico, toda e qualquer postura, independente do fazer político institucional, que aponte caminhos, propostas e resistências ao modelo predador do colonialismo e do capitalismo histórico e do seu tenebroso produto contemporâneo, o neoliberalismo incrustrado no aparelho do Estado, nos gestores do capital do governo de turno, seja ele de qualquer cor partidária emanada das urnas.
ENTREVISTAS
Cenários de luta
Resistência popular, ruas desbordantes de gente, punhos em alto, frases mobilizadoras estampadas em centenas de faixas, explosão reivindicativa no limite da ação repressiva das forças de manutenção da ordem das instituições, são o cenário natural do cinema político em geral, intervindo nessa realidade com as suas limitadas armas da construção de uma imagem aliada ao clamor popular, sempre de frente aos capacetes, cacetetes e outra armas (não letais mas que todavia podem matar) da PM nas manifestações de rua. Construir um discurso que expresse essa resistência popular é o desafio último, de posse de todo o material, além de entrevistas e depoimentos posteriores dos atores sociais e pesquisadores desses temas, para enfrentar a narrativa hegemônica dos meios (des) informativos da mídia empresarial.
Além desse espaço físico natural, desse terreno habitual do cinema de intervenção política, há também outros focos, outros temas, históricos ou de conjuntura atual, a serem atendidos, que envolvem outros cenários mais quotidianos e calmos - sem o acréscimo da repressão estatal - como escritórios, Universidades, Escolas, sedes de organizações sociais, de Partidos, Sindicatos, residências particulares, etc., onde a possibilidade de aprofundar temas é facilitada a depender dos tempos oferecidos às entrevistas. Essa conjunção entre os materiais obtidos no calor da hora e aqueles articulados posteriormente na tentativa de construir um discurso envolvente é que fornecem a ignição para acender os motores práticos de estimulo à ação política.
Documentário: Piñera, a Guerra contra Chile
Viagens e acasos no “cinema do real”
Outros cenários imprescindíveis são os territórios das viagens, tanto o percurso por terra - sublinho só por terra porque é esse percurso realizado até o nosso objetivo que pode realmente acrescentar valiosa informação ao nosso destino final - quanto o local das gravações propriamente dito, onde a experiencia do diretor e equipe – quando há – deve aflorar em toda a sua contundência de adaptação, lugares onde o estúdio prévio do tema a ser tratado se concretiza e facilita o embate com os atores sociais a entrevistar. Além do fator acaso, essencial no cinema de rua, o gesto da surpresa diante de um rosto, um prédio, uma rua, um acontecimento qualquer que “exige” ser notado pelo olhar do diretor, há os acontecimentos tangenciais, dentro do contexto focal do tema, que as vezes podem acrescentar dimensões não imaginadas à obra, nem sequer imaginadas no início do projeto. Estas podem se constituir em elementos narrativos fundamentais no momento da construção do discurso final do documentário. Teria diversos exemplos para enumerar sobre isto último, situações que inclusive transformaram o destino final do roteiro (sem roteiro). Como exemplo posso citar o que aconteceu num documentário que dirigi: uma vez finalizadas quase todas as entrevistas, a informação recebida no Terminal Rodoviário de Valparaiso, no Chile, sobre o desconhecimento geral da localização da casa natal de Salvador Allende (só se falava numa das casas de Pablo Neruda) criou uma outra estrutura para um documentário que narrava os acontecimentos do governo chileno entre 1970 e 1973, ano do golpe de Pinochet. A inclusão da procura da casa natal do ex presidente foi a agulha que costurou o tecido argumentativo maior do filme, criando respiros significativos ao tempo que mostrava a cara do povo na sua crua afeição e empatia com o tema. (“Buscando a Allende” /2008; 70 min.). Outro caso interessante aconteceu em Minas Gerais, durante as gravações de “Dandara, enquanto morar for um privilegio, ocupar é um direito” em Belo Horizonte. O documentário foi realizado em 2013 a convite de um grupo político denominado Brigadas Populares. A gente dispunha de uma lista de nomes e endereços dentro da ocupação para as entrevistas já acordadas com os ocupantes, mas no percurso eu fui detectando outras pessoas que junto ao cenário onde estavam quando a equipe nossa passava, chamavam a minha atenção o que provocava o grito: “câmera aqui!”. Inclusive a cena final, é um rap com um ocupante que veio cantar a sua música para nós e acabou fechando o documentário, ele mesmo, cantando. E a tomada foi única, sem repetição, realizada também graças a experiencia do meu operador de câmera e diretor de fotografia nessa ocasião. Essas entrevistas para além da lista fornecida pelas Brigadas Populares enriqueceram o universo imagético e discursivo. Portanto, o documentário em geral e o documentário de intervenção política em particular, deve estar totalmente aberto a interferências ocasionais como as descritas acima, sob pena de sucumbir as regras rígidas de um roteiro, que aliás, não utilizo.
Documentário: Carlos Marighella - quem samba fica, quem não samba vai embora
Roteiros sem roteiro
É claro que o documentário de intervenção política pode (e deve na maioria dos casos, ainda que seja aberto) utilizar um roteiro muito bem estruturado, de modo a evitar caminhos tangenciais, contextuais ou até acréscimos de dados e opiniões que sejam linhas de bifurcação tirando assim a atenção do objetivo principal do documentário. Sucede que eu particularmente prefiro todos esses caminhos tangencias que são justamente os que sustentam a narrativa principal e, às vezes, como dito acima, podem se erigir em momentos chaves e até em linha principal para contar o argumento do filme. Mas há algo do que não se pode abrir mão na hora de decidir fazer um documentário deste tipo (o que também vale para todo tipo de documentário): estudar o máximo possível o tema, seja na fonte que for, o importante é estar munido de bastante informação na hora das pesquisas de campo, na elaboração do elenco inicial, da pré-produção, e principalmente das entrevistas, para não deixar nada desprovido de atenção durante o encontro com o nosso interlocutor. E tudo isto, todo esse arsenal de informações, funciona como um roteiro sem ter um roteiro tradicional em mãos. O que temos é um mapa de percurso antes, durante e depois, na edição, na montagem, quando podemos nos defrontar com a falta de algum elemento discursivo e temos, assim, que retornar à campo para resgatar esse (s) elemento (s). Quanto mais preparados estivermos na hora de iniciar os trabalhos, menos frequente será nosso retorno à procura de novas fontes, muitas das quais surgem na medida que vamos entrevistando o elenco preestabelecido. O roteiro de filmes de ficção também pode oferecer um vasto território de improvisação a depender do estilo da direção e de outros tantos fatores que podem obstaculizar o cumprimento a risca do que foi escrito no papel. Mas tudo isso está dentro, digamos, de um círculo concêntrico mais amplo. No caso do documentário de intervenção política esse círculo se expande muito mais e pode não ter fim a sua expansão, não há limites, já que um tema político tem geralmente suas causas em épocas passadas ou até em circunstancias mais próximas ou imediatas que também é necessário investigar e procurar os protagonistas que possam aportar essas novas informações. Em definitiva, num roteiro sem roteiro, há um marco de tempo especifico de entre 20 e 90 minutos aproximadamente (apreciação pessoal) onde devemos incluir todos os materiais possíveis para o entendimento do tema, numa síntese (im)possível, e ao mesmo tempo abrir espaços para que o receptor continue interessado em procurar maiores informações, intensifique a sua luta sociopolítica e/ou verifique bibliografias e outros materiais audiovisuais sobre o tema em questão.
Documentário: A Braskem passou por aqui, a catástrofe de Maceió
Cine debate e ação direta: o sal do documentário de intervenção política
Ação direta é aquela que não precisa de autorizações nem de reuniões excessivas e muito menos de hierarquias e autoridades para serem implementadas. Ação direta é uma atitude racional e de coragem que moveu e move a História até hoje e continua sendo o motor das revoluções e outras mobilizações localizadas de grande importância, principalmente em regiões afastadas dos grandes núcleos de poder econômico. Quando um documentário é utilizado como peça de ação direta, contribuindo de forma fundamental no avanço e visibilidade das vozes e corpos em luta, o objetivo artístico político do cineasta documentarista foi atingido em todo seu esplendor. A sua contribuição à luta se verifica nas milhares de pessoas que utilizam o filme para revelar aspectos pouco conhecidos do tema, para sublinhar outros já conhecidos e principalmente para resguardar a memória para que outras gerações não abandonem a transmissão e compromisso da dignidade das lutas. Como exemplo de ações diretas nas quais este tipo de documentários teve participação fundamental, poderia citar vários filmes que tive a oportunidade de realizar. Um deles foi “A Revolta do Buzu”, um contundente protesto estudantil contra o aumento das passagens de ônibus que parou a cidade de Salvador por uma semana em 2003, que foi utilizado, ainda na sua versão em VHS, para oferecer subsídios de organização e mobilização para a criação do Movimento Passe Livre em vários pontos do país e que depois influenciaria a organização e deflagração das marcantes Jornadas de Junho em 2013. Isto é relatado no documentário “A partir de agora, as Jornadas de Junho” pelos próprios integrantes do MPL (Movimento Passe Livre). Também vivenciei o caso da influência de um outro documentário, “A Rebelião dos Pinguins, estudantes secundaristas chilenos contra o sistema” realizado no Chile em 2007, que foi largamente utilizado em São Paulo para entender a dinâmica da ocupação de Escolas em 2015, retratadas posteriormente no documentário “Acabou a Paz, isto aqui vai virar o Chile, Escolas Ocupadas em São Paulo” /2016/60 min.). São exemplos do documentário de intervenção política no seu papel de ferramenta de transformação social junto a tantas outras formas de expressão que perseguem o mesmo objetivo.
Para o cineasta independente, que decide participar de uma luta e que não está atrelado a um Partido especifico, Ong, Universidade ou Sindicato (embora possa obter pequenos apoios de todos estes sem ferir a sua independência e autonomia), o risco da luta isolada sempre estará presente na sua câmera solitária. Sem retaguarda, entregue à possibilidade da repressão como qualquer manifestante nas ruas em momentos de conflito e enfrentamento com as forças da ordem, só tem um caminho: direcionar o seu estimulo para a frente. E nesse horizonte, assim que o documentário for finalizado, estão os cines debates, os cineclubes nas ocupações, nos Sindicatos, nos locais das organizações populares, nas Escolas, nas universidades e hoje até nos fóruns de streaming. Também existe a possiblidade das Tvs Educativas sobretudo, janelas possíveis para este tipo de obras audiovisuais, além das Tvs Comunitárias, Universitárias e Legislativas e hoje os canais das plataformas digitais e redes sociais. O porto seguro, o cais de chegada destes documentários de intervenção política realizadas em favor das reivindicações e mobilizações populares é a discussão, o esclarecimento de fatos constitutivos do tema em tudo quanto é espaço físico (e hoje também virtual), a maior parte das vezes omitidos pela imprensa oficial e em muitos casos também pela historiografia do Poder.
Carlos Pronzato
Cineasta documentarista, poeta, escritor
Contatos: (21) 9 7995-7981
Facebook e Instagram: Carlos Pronzato
Catálogo: www. lamestizaaudiovisual.com.br
Canal de youtube Carlos Pronzato
*Carlos Pronzato é cineasta documentarista, diretor teatral, poeta e escritor. Formado em Direção Teatral pela UFBA (1993), com pós - graduação em Teoria do Teatro Contemporâneo pela UFRGS, (2002). Suas obras audiovisuais e literárias destacam-se pelo compromisso com a cultura, a memória e as lutas populares. Dentre seus mais de 80 documentários destacam-se: "Bolívia, a Guerra da Água", "O Panelaço, a rebelião argentina", "Bolívia, a guerra do gás", "Buscando a Salvador Allende", “A Revolta do Buzu”, "Carabina M2, uma arma americana, Che na Bolívia", “Madres de Plaza de Mayo, verdade, memória e justiça”, "Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora", "Pinheirinho, tiraram minha casa, tiraram minha vida", "Mapuches, um povo contra o Estado", "A partir de agora, as Jornadas de Junho 2013", "Dívida Pública Brasileira, a Soberania na Corda Bamba", “Acabou a Paz, isto aqui vai virar o Chile, escolas ocupadas em São Paulo”, “Terceirização, a bomba relógio”, “Ocupa Tudo, Escolas Ocupadas em Paraná”, “A Escola Toma Partido, uma resposta ao Projeto de Lei Escola sem Partido”, “1917, a Greve Geral”, “1968, a Greve de Contagem”, “Mestre Moa do Katendê, a primeira vítima”, "Lama, o crime Vale no Brasil, a tragédia de Brumadinho", “Pinheira, a Guerra contra Chile”, “Amapá, quem vai pagar a conta?”, etc. Entre outras importantes distinções recebeu, em 2008, o prêmio da CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais); em 2009, na Itália, o prêmio Roberto Rossellini; em 2017, no Rio de Janeiro, o prêmio Liberdade de Imprensa; em 2019 o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cataguases, MG, pelo documentário "Lama, o crime Vale no Brasil, a tragédia de Brumadinho". Em 2020, em Porto Alegre, o prêmio de Direitos Humanos em Jornalismo pelo documentário “A Confederação dos Tamoios, a última batalha”. Em 2021, o prêmio DOIS PAULOS, pelo centenário de dom Paulo Evaristo Arns e Paulo Freire (Comissão Pró Centenário Dom Paulo Evaristo Arns).
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