última atualização 09-01-2023

Dicionário da Educação Audiovisual - Potência

Cristina Domingues Lemos

 Licenciada em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Especialista em Mídias na Educação (CINTED) e em Tutoria em EAD (FACED) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da rede pública municipal de São Leopoldo, desde 1988. Integra o Núcleo de Educação Audiovisual (NEA) da Secretaria Municipal de Educação. Professora tutora da Escola da Indústria Criativa da Unisinos desde 2012. E-mail: cristinadlemos@gmail.com






Luciana Domingues Ramos

Mestra em Educação em Ciências: química da vida e saúde na UFRGS. Possui Pós-Graduação em Mídias na Educação (CINTED-UFRGS) e graduação em Biologia pela Unisinos. Professora da Educação Básica nas redes Estadual do Rio Grande do Sul e Municipal de São Leopoldo. Atuou na criação do NEA de São Leopoldo. E-mail: ludomingues_sl@yahoo.com.br



Capilés em tela: a experiência do cinema como potência para a aprendizagem


O cinema transborda o conteúdo programático. Ao viver no cinema uma história que tangencia a sua própria, cada um descobre os sentidos próprios, do lúdico ao intrigante, da memória à imaginação. É preciso colocar algo de si para que esses sentidos aflorem. (M. A. Santos).


Este capítulo apresenta uma breve retrospectiva da experiência de produção cinematográfica em escolas da rede municipal de São Leopoldo e promove algumas reflexões a partir do avanço desta prática em ambientes escolares e extramuros. O principal objetivo é compartilhar essa vivência, resultado da ação docente das autoras em diferentes espaços e cenários, construídos colaborativamente com seus pares, no decorrer de mais de uma década.

Considerando o cinema na escola como possibilidade de transformação pedagógica e como potencializador de aprendizagens, este trabalho se propõe a relatar a trajetória de um grupo de professores que se abriu à produção cinematográfica na escola como uma metodologia para ir além do consumo/percepção/contemplação/observação de obras cinematográficas e que, atualmente, constrói, junto com seus estudantes, uma nova relação com o conhecimento. Assim, a produção cinematográfica na escola se constitui em vivência coletiva, saberes compartilhados e espaço de expressão e diálogo.

Alguns conceitos nortearam este percurso e permitem uma melhor compreensão do recorte de que trata esta produção: os princípios e metodologias que orientaram o percurso destes educadores e que, ao se sentirem desafiados, escolheram caminhar em conjunto, consolidando um trabalho reconhecido entre seus pares, e que ainda se dispõem a ir além, vislumbrando o potencial deste cenário já constituído, na contribuição de uma educação emancipatória e transformadora. 

Cinema como potência de aprendizagem

Em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, existe uma escola nova. As mudanças não estão em suas salas de aula, móveis ou em suas paredes. Disciplinas, conteúdos e grades (curriculares ou físicas) permanecem inabaláveis. Os saberes, porém, começam a circular em grandes áreas, cujos limites se tocam, transpassam-se e se integram. Professores e estudantes experimentam uma nova forma de interatividade e de relação pedagógica, pois assim como o cinema pode quebrar a quarta parede para conversar diretamente com o espectador, em São Leopoldo, professores foram capazes de inaugurar uma nova forma de dialogar, mediar, compreender e desafiar seus estudantes a compartilhar suas ideias e a construir aprendizagens de forma significativa e lúdica, aberta e integrada aos alunos e seus desejos e propósitos, com a inserção do cinema no processo de construção do conhecimento. 

Para Ramos e Boll (2019) o contexto de Cultura Digital, que democratiza o acesso e o compartilhamento de informação e acomoda múltiplas linguagens, estabelece um cenário que descortina variadas possibilidades de emprego da tecnologia nos processos educativos, oferecendo colaboração e compartilhamento e promovendo a autoria e protagonismo. Para as autoras, a escola inserida nesse contexto, percebendo as alternativas que se apresentem, tem diante de si uma possibilidade de fortalecer processos e dinamizar relações comunicativas, para ir além da utilização da tecnologia como suporte, mas como possibilidade de produção e criação:

Em um cenário comunicacional onde quase todo tipo de informação pode circular, há de se pensar sobre, ao menos, dois aspectos: ou a escola deixa de aproveitar esse cenário, cedendo espaço para outras intenções na disseminação e visibilização da informação, ou ela toma posse de seu papel de formadora de sujeitos mobilizadores, comunicadores e disseminadores do conhecimento, da arte e de suas construções sob uma perspectiva ética e estética de comunicação. (RAMOS; BOLL, 2019, p. 09)

            Para Lemos et al (2018), uma das possibilidades que se apresentam potentes no espaço escolar é a produção audiovisual. Segundo os autores, é importante que se vá além da utilização da linguagem audiovisual como um recurso ilustrativo, mas que se considere a potencialidade dessa linguagem:

É significativo, portanto, sistematizar e viabilizar a construção coletiva e colaborativa de uma proposta para a educação audiovisual, que assuma seu papel para a ação pedagógica desenvolvida entre professor, aluno e comunidade, com apoio da tecnologia. Esse processo amplia repertório de gêneros, estilos e narrativas que colocam o cinema como forma de conhecimento e experiência de mundo. (LEMOS et al., 2018, p. 01)

Migliorin (2010) aponta o cinema como um potencializador de aprendizagens:

Assim, o que está dado para se ensinar com o cinema é um não-sei-o-quê de possibilidades. Ensinar com o cinema passa, justamente, por um “não saber” das partes que se preparam para o acontecimento, ou seja, para a invenção intempestiva consigo e com o outro, com as imagens, mundos e conexões que o cinema nos permite, nos autoriza. Mas só o cinema pode isso? Certamente não. Mas talvez nenhuma arte ou meio de expressão o possa com tanta intensidade. (MIGLIORIN, 2010, p. 04)

Em sua experiência, Migliorin (2010) destaca o papel do cinema como algo que precisa estar na escola, não para ensinar algo a quem não sabe, mas sim para promover espaços de invenção coletiva e de compartilhamento, catalisadores das potências sensíveis de um filme. Segundo Fantin (2007), o cinema no contexto da mídia-educação é capaz de tudo isso:

O cinema, no contexto da mídia-educação, pode ser entendido a partir de diversas dimensões – estéticas, cognitivas, sociais e psicológicas – inter-relacionadas com o caráter instrumental, educar com e para o cinema, e com o caráter de objeto temático educar sobre o cinema. Ou seja, a educação pode abordar o cinema como instrumento, objeto de conhecimento, meio de comunicação e meio de expressão de pensamentos e sentimentos. Considerar o cinema como um meio significa que a atividade de contar histórias com imagens, sons e movimentos pode atuar no âmbito da consciência do sujeito e no âmbito sócio-político-cultural, configurando-se num formidável instrumento de intervenção, de pesquisa, de comunicação, de educação e de fruição. No entanto, considerar o cinema como um meio não significa reduzir seu potencial de objeto sociocultural a uma ferramenta didático-pedagógica destituída de significação social. A experiência estética possui um importante papel na construção de significados que a obra propicia e os diferentes modos de assistir aos filmes fazem com que estes atuem diferentemente conforme o contexto. (FANTIN, 2007, p. 01)

Para Fantin (2006), o cinema é um difusor do patrimônio cultural da humanidade, revelador da realidade, constituído organicamente em diferentes dimensões: cultural, cognitiva, estética, psicológica e social. Rivoltella (apud FANTIN, 2006, p 75) reafirma o cinema como importante campo de interlocução: “À luz das novas teorias interacionistas, o cinema e os meios em geral constituem campos de interação simbólica em que os sujeitos constroem e compartilham significados”. Segundo Ramos e Lemos (2018):

[...] é consenso que a escola deve buscar suportes que sejam bem-sucedidos em promover a aprendizagem. As tecnologias da Informação e da Comunicação, computadores, câmeras digitais, celulares, já estão incrementando ações nas salas de aulas pelo país. Assim, aos professores estão postas questões sobre como mediar e orientar o uso pedagógico desses recursos, para que não sejam apenas algo que deva ser visto/ouvido/lido sem que se leve em conta suas possibilidades na promoção do protagonismo dos sujeitos. (RAMOS; LEMOS, 2018, p. 149)

Sendo a escola um espaço importante para a constituição da experiência comunicativa do estudante, a potência de uma educação atravessada pela linguagem audiovisual ultrapassa a perspectiva ilustrativa para a aprendizagem de algum conteúdo formal. Ela abrange o desenvolvimento de habilidades comunicacionais e a produção de estilos discursivos. Há potência no formato atrativo da linguagem audiovisual que dialoga com um processo pedagógico permeado por autoria, colaboração e comunicação. A escola encontra a possibilidade de articular a convergência de diversos elementos como domínio da tecnologia, capacidade de conexão e interlocução, utilização de recursos narrativos, potencial artístico-criativo em uma produção audiovisual escolar.

É neste contexto que a experiência de professores da rede municipal de São Leopoldo se torna relevante, pelo exemplo, pelos resultados e, acima de tudo, pela trajetória de mais de uma década.

Primeiros passos 

Com as tecnologias da informação e da comunicação cada vez mais acessíveis e com o amplo domínio dos dispositivos digitais pelo público estudantil, o caminho para a produção audiovisual nas escolas capilés[1] começa a ser trilhado por professores precursores de uma metodologia que busca uma forma de aprender e de ensinar mais espontânea, intuitiva, participativa e livre.

Jenkins (2009) apresenta três termos-chave que revelam tendências para a educação, para a reforma midiática e para a cidadania democrática: convergência, inteligência coletiva e participação. A escola é um espaço institucional potente para este contexto:

Nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades. A inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte alternativa de poder midiático. Estamos aprendendo a usar esse poder em nossas interações diárias dentro da cultura da convergência. Neste momento, estamos usando esse poder coletivo principalmente para fins recreativos, mas em breve estaremos aplicando essas habilidades a propósitos mais sérios. (JENKINS, 2009, p. 28).

Esse panorama é convergente, acomoda linguagens múltiplas, compartilhadas em complexas redes interativas de comunicação, o que demanda um professor articulador de ações colaborativas e de inteligência coletiva, termo que para Levy (1999, p.17) “especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo”.

A conjuntura de relação com a informação apontada pelos autores requisita a escola como um dos espaços de constituição dos usuários, espectadores, autores, atores, colaboradores e comunicadores atuantes nesse cenário. É legítimo pensar, então, na potência do encontro entre cinema e educação como uma das perspectivas possíveis na ação pedagógica.

Além dos avanços tecnológicos, outros fatores colaboram para que o cinema possa ser visto como elemento propulsor da ação pedagógica, como fator desencadeador de aprendizagens e desenvolvedor de competências essenciais para este momento de transformação e disrupção. 

Para Lazzareti (2018), cinema e educação estabelecem uma relação intersticial, onde o lugar não é específico nem de um, nem de outro, mas de um terceiro que se estabelece dessa relação e torna possível flexibilizar algumas perspectivas sobre a rigidez estrutural da escola:

O contágio, advindo do encontro e da exposição entre os dois universos, por reverberar em cada um deles, desencadeando alterações e readequações tanto no cinema, quanto na educação. No acontecimento dessa relação, o interstício apresenta-se como um espaço e tempo para que as áreas estejam uma em relação a outra, ou uma para a outra, sendo com a outra - o cinema sendo com a educação e a educação sendo com o cinema. (LAZZARETI, 2018, p.96)

No ano de 2009, durante a Mostra Pedagógica promovida pela Secretaria Municipal de Educação (Smed) de São Leopoldo, foi realizada a primeira formação voltada para a produção audiovisual, no formato de oficinas, tanto para professores quanto para estudantes, numa perspectiva pedagógica do cinema em sala de aula. A Vídeo Oficina[2] foi a primeira formação desenvolvida pelo Núcleo de Tecnologia Educacional Municipal de São Leopoldo (NTM) e os curtas abordaram o tema da Semana Municipal da Educação - Ecocidadania: Respeito a todas as formas de vida.

Em 2011 e 2012, o Gabinete da Primeira Dama, promoveu o Concurso de Vídeos da Campanha do Agasalho, voltado para jovens estudantes da cidade. As premiações foram pagas em dinheiro e em ingressos para espetáculos artísticos que circularam na cidade, voltados para o público jovem. As produções foram disponibilizadas na internet. Nessa mesma época, algumas escolas também já disponibilizavam suas produções em sites de compartilhamento de vídeos, como o Youtube. Em ambas as edições, os estudantes produziram curtas[3], apresentando temas como solidariedade, responsabilidade social e cidadania.

Tais iniciativas começaram espontaneamente. Conforme Lemos e Ramos (2018), em uma escola municipal, um grupo formado por estudantes e professores mediadores dos Espaços Virtuais de Aprendizagem (EVAM) organizou  uma produtora na escola: a Eh! Produções (atualmente #EH_Produções). O primeiro projeto desenvolvido foi João Carlos: sonhar para acordar (2011) – filme livremente inspirado no livro “Leonardo”, de Nelson Cruz (2007). O curta dava vida à estátua mais famosa do Rio Grande do Sul, o Laçador, e abordava o cotidiano do gaúcho, personalizado na figura de João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes. Esse filme participou do Concurso Literário Editora Ática/Scipione, em 2011.

Desde 2011, a #EH_Produções vem consolidando suas práticas, com ações articuladas às mais diversas áreas de estudos e ampliou exponencialmente sua produção no decorrer destes oito anos de atividades. Atualmente, a escola se utiliza de comunicação multiplataforma, onde disponibiliza suas produções digitais (galerias digitais, canais de vídeo, biblioteca virtual, entre outras) em diversos sites de distribuição de conteúdo, estabelecendo diversos canais de diálogo com o mundo, visibilizando suas construções.

Bem-vindo à cultura da convergência, onde velhas e novas mídias colidem, onde a mídia corporativa e a mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis. A cultura da convergência é o futuro, mas está sendo moldada hoje. Os consumidores terão mais poder na cultura da convergência – mas somente se reconhecerem e utilizarem esse poder tanto como consumidores quanto como cidadãos, como plenos participantes de nossa cultura. (JENKINS, 2009, p. 343).

Assim, se estabelece a necessidade de espaços educativos capazes de promover o processo de construção do conhecimento, permeado por uma postura cidadã de relação com a informação, de relacionamentos humanos, de ética e de reconhecimento dos espaços a serem ocupados. As iniciativas destacadas neste relato inauguram na rede municipal ações voltadas a este propósito, envolvendo comunicação e convergência de linguagens e narrativas.

O encontro e os desafios

Em 2014, vários professores da rede municipal já reuniam suas turmas para produção e exibição de filmes, de acordo com suas demandas e interesses. A partir disso, a Smed identificou cada uma das iniciativas e as reuniu em um novo projeto, o Curta Capilé, que se organizou em torno da formação para os professores em audiodescrição e, posteriormente, foi feito o compartilhamento com os estudantes. As temáticas sugeridas para as produções foram: acessibilidade, vulnerabilidade e inclusão digital. O curso de audiodescrição foi promovido pela Fundação Liberato e o Grupo Tagarelas, junto com a Smed. Todos os filmes produzidos com esse recurso de acessibilidade foram exibidos nas salas do cinema da cidade.

A repercussão e a ressonância do Curta Capilé elevaram a produção de filmes nas escolas municipais a um novo patamar. Um novo espaço havia sido ocupado, novas práticas inauguradas e, o mais importante, um grupo de educadores estava reunido, em torno de um novo modo de fazer educação na rede municipal.  Ações anteriormente isoladas ou reduzidas a algumas instituições pertencentes à rede, encontraram mais um espaço colaborativo e convergente:

Esse projeto visava qualificar professores para o uso de tecnologias e para o trabalho interdisciplinar, de modo que produzissem curtas-metragens, usando tecnologias que promovem a acessibilidade midiática. Os resultados apontam para várias reflexões sobre o caráter social da aprendizagem e sobre o modo como ela pode ser significativa tanto para professores quanto para alunos. Com o engajamento mútuo de todos os participantes, os curtas metragens, quando desenvolvidos no espaço escolar para um fim pedagógico, tornam-se uma ferramenta didática importante para desenvolver habilidades e competências, tanto de alunos quanto de docentes.  (KERSCH; MARQUES, 2016, p.77)

O projeto Curta Capilé oportunizou envolvimento e colaboração entre alunos e professores, tornando-se uma referência no panorama da produção audiovisual do município, constituído como um trabalho interdisciplinar numa comunidade de prática, ou seja, um grupo com nova identidade, engajamento mútuo, um empreendimento comum e um repertório compartilhado (KERSCH; MARQUES, 2016, p. 90).

Com este terreno fértil, em 2015, novas ações de popularização nas escolas completam o cenário de consolidação do audiovisual como elemento chave desta forma de aprender. Surge então o Festival São Leo em Cine, que foi pensado originalmente para as séries finais, mas em sua primeira edição, já envolveu, inclusive, produções de séries iniciais e da Educação Infantil. Em 2016, o Festival São Leo em Cine repetiu o sucesso, alcançando a marca de 61 filmes de curta-metragem inscritos, com temática livre. 

Criação do Núcleo de Educação Audiovisual

Os reflexos desta sociedade cada vez mais conectada, capaz de consumir, criar e compartilhar todo tipo de conteúdo, também são sentidos na escola. Em 2017, surge então uma proposta que instrumentaliza professores e estudantes, de forma mais ampla e profunda: a criação do Núcleo de Educação Audiovisual (NEA) e, na sequência, a proposta de criação da Casa de Cinema Estudantil, conforme relata Campos et al (2018). O NEA integra o setor pedagógico da Smed, segmento da Gestão da Educação Básica, e atua na coordenação, organização e integração de ações que compõem a política pública de fomento à produção audiovisual na escola. 

O NEA apresenta como principal objetivo colaborar na promoção do protagonismo e da autonomia do estudante, a partir do incentivo à criação e à autoria, através da apropriação crítica da linguagem cinematográfica e suas possibilidades de expressão artística e de inserção social e cultural. 

Com isso, a promoção da realização de curtas-metragens vinculados às práticas pedagógicas da escola pública e a valorização dos sujeitos engajados nessa proposta se tornam elementos fundamentais do NEA para uma construção que objetive uma concepção de educação voltada para as questões tecnológicas no espaço escolar com um viés crítico, consciente e cidadão.

Como ação inicial, o NEA desenvolveu uma formação presencial e outra na modalidade EAD, na plataforma Moodle. Foram alcançados 60 professores e cerca de 200 alunos, com oficinas ministradas por profissionais da área do cinema sobre introdução à linguagem cinematográfica e à produção audiovisual. 

Ainda em 2017, o Festival São Leo em Cine, em sua terceira edição, recebeu 78 produções, de 28 escolas públicas da rede municipal, e envolveu em torno de 2 mil pessoas, contabilizando estudantes, professores e comunidade. Conforme Campos et al (2018), o Festival selecionou 60 curtas de ficção, três animações e quinze documentários. As temáticas foram diversas e potentes, como a valorização da vida,  ética, empatia, Direitos Humanos, bullying, depressão, questões de gênero e violência, abandono, problemas da infância e adolescência.

Em 2018, foram 70 filmes enviados para o São Leo em Cine, 22 para o Festival Minuto Mudo e doze no Desafio 194 segundos. Para o ano de 2019, o NEA estabeleceu três eixos de atuação: formação de público para o cinema, exibição de filmes independentes e produção de filmes estudantis. A articulação entre estes eixos é realizada através da organização de festivais abertos a diferentes públicos, integrantes de diversos espaços educacionais, desde a educação infantil até o ensino médio, da rede pública ou particular, com o envolvimento da comunidade escolar em geral, com abrangência municipal, estadual ou nacional, de acordo com a proposta de cada festival.

Além dos festivais, o NEA tem se dedicado a duas outras ações: Cine Debates, no formato de cineclube, e a oferta de oficinas com os estudantes nas escolas. A participação nos debates e as oficinas são gratuitas, oferecidas a todas as escolas e tem como objetivo atender a demandas específicas de acordo com o público, questões técnicas sobre a linguagem cinematográfica e temáticas emergentes. O NEA também alimenta uma página na internet[4], com notícias importantes, agenda, informações essenciais sobre os festivais e seus respectivos editais, arquivo fotográfico e memória. 

Os movimentos que ocorrem na sala de aula encontram ressonância nas ações do NEA. Assim, quando os estudantes produziram curtas sobre pesquisas científicas e sobre temas relevantes para a ciência, o diálogo entre os sujeitos deste processo se ampliou. Desde 2018, o NEA promove o Festival Minuto Mudo (Cine Motic) ancorado à Mostra de Tecnologia e Inovação com Ciências (Motic), exibindo curtas com temáticas voltadas à pesquisa científica, como tecnologias e sustentabilidade. 

Assim como a sala de aula ficou pequena para os estudantes, as ações integradoras do NEA, Smed, professores, estudantes e comunidade, acompanham este movimento em espiral, que vem ultrapassando barreiras físicas e institucionais, trazendo aos professores que atuam no NEA, seja na coordenação na Smed ou como colaboradores nas escolas, o enorme desafio de assimilar a convergência digital e promover aprendizagens significativas, para uma geração que está imersa em informação, numa relação que deve necessariamente ser mediada.

Cenários e destinos

Neste contexto hipermidiático convergente, a produção disponibilizada potencializou a visibilidade das construções escolares. Os filmes ultrapassaram os limites da cidade e já são assistidos e reconhecidos em diversos locais do país e do mundo. A escola municipal que em 2011 inaugurou a #EH_Produções ampliou a participação para além dos festivais municipais e hoje apresenta suas produções em eventos estudantis pelo país, recebendo reconhecimento e destaque em eventos internacionais. Na escola, o cinema (e a produção de conteúdo digital) tornou-se um eixo articulador do fazer pedagógico da instituição, apresentado nas diretrizes do seu projeto político pedagógico, que indica para o eixo “Tecnologias educacionais: espaços e propostas pedagógicas” os seguintes objetivos:

Fazer uso da tecnologia e seus dispositivos como potencializadores da aprendizagem, de propostas libertadoras, de construção cidadã do conhecimento, de disseminação da palavra dos sujeitos. Utilizar o contexto digital para, muito além do acesso à informação, possibilitar reflexão, discussão, produção e voz ao estudante e sua comunidade. (ESCOLA, 2018. p. 94).

Além de participar de Mostras e Festivais locais, como o São Leo em Cine e Minuto Mudo, os curtas produzidos pelos estudantes na #EH_Produções já foram convidados a participar de eventos no Brasil e no Exterior, como o Festcine 31, Festival de Cinema Estudantil de Guaíba e Festival Internacional de Cinema Estudantil de Santa Maria, Festival Primeiro Filme, o FECEA, POADOC, CURTA 5 - Festival Estudantil de Curtas, realizado pelo IFBA Campus Vitória da Conquista, I Mostra de Filmes de Pesquisa em Educação em Ciências (vinculado ao XI ENPEC, realizado em Natal/RN), Mostra  Estudantil Joaquim Venâncio, no Rio de Janeiro, e o FENACIES, no Uruguai.

Mostras e Festivais são momentos de fruição, troca e interação, oportunidades para o encontro e o diálogo entre estudantes e professores realizadores. Daí a importância destes eventos, não por prêmios ou destaques, mas por se constituírem momentos de divulgação, de interlocução e de aprendizagens.

Durante o I Seminário Audiovisual e Educação - Metodologias na construção do conhecimento, em 2018, foi compartilhado o relato da produção “Quando eu Crescer: movimentos em rede e aprendizagem colaborativa na produção audiovisual escolar''. Na segunda edição do Seminário, foi apresentado o “Projeto #EH_Produções: produção de conteúdo escolar em contexto de cultura digital”.

Para a 8ª Mostra Audiovisual Estudantil Joaquim Venâncio, realizada em 2018, no auditório do Museu da Vida, dentro do campus da Fundação Oswaldo Cruz, dois curtas foram apresentados: “Celular ou pega-pega” e “O que eu ganho com isso?''. Para a 9ª Mostra (2019), os curtas selecionados foram “O padrão” e “Contigo Ninguém Acaba”.

As produções e os relatos apresentados permitiram, sob a perspectiva dos estudantes, o compartilhamento de questões atuais, cujas origens são suas vivências, anseios e desejos. Patrimônio histórico, uso excessivo das telas, cidadania e empatia, ética, saúde mental e distúrbios de imagem foram algumas das temáticas de interesse, atravessadas por leituras e pesquisas e narradas por meio da linguagem cinematográfica.

Ao perceber a potência do cinema realizado por estudantes, talvez de forma intuitiva e espontânea, os professores foram capazes de inaugurar um movimento que ampliou a discussão sobre esse processo pedagógico para outras esferas, dispostas a colaborar com a implantação e a construção de políticas específicas para o audiovisual. Cada vez mais, a comunidade capilé tem a chance de se reconhecer nas telas do cinema. Para cada curta, uma bela história de aprendizagens, de protagonismo estudantil e de ação pedagógica compartilhada em um grupo de educadores que aceitou aprender junto com seus estudantes.

Este relato evidencia a relevância de uma experiência que se funda nas salas de aula, a partir da ação de um coletivo que se inspira na arte, no cinema, na vida e na esperança de seus jovens alunos. É um capítulo de uma trajetória conduzida por pessoas que escolheram a cultura da participação, do diálogo, da interação e da conexão como elementos capazes de ampliar horizontes, transformar realidades, promover a leitura e a possibilidade de ação no mundo.

Referências

CRUZ, Nelson. Leonardo, sonhar para acordar. 1ª Edição. São Paulo: Paulinas, 1997.

CAMPOS, Lucas; LEMOS, Cristina Domingues; RAMOS, Luciana Domingues. Núcleo de Educação Audiovisual: uma proposta de política pública de fomento à produção audiovisual na Rede Pública de São Leopoldo. In: SANTOS, Maria Angélica (org). Luz na docência. Porto Alegre: Editora Capitólio, 2018. p. 205-213

ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL PROFESSOR JOÃO CARLOS VON HOHENDORFF. Projeto Político Pedagógico. São Leopoldo, 2019. Documento escolar.

FANTIN, Mônica. Mídia-educação, cinema e produção de audiovisual na escola. Revista Intercom. São Paulo, 2006. Disponível em http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/r0652-1.pdf. Acesso em: 13 ago. 2019.

_____. Mídia-Educação e cinema na escola. Teias, Rio de Janeiro, ano 8, nº 15-16, jan./dez. 2007. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/viewFile/24008/16978. Acesso em: 13 ago. 2019.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Tradução Suzana Alexandria. 2ª ed. São Paulo: Aleph, 2009.

JOÃO Carlos, Sonhar para acordar. Publicado pelo canal Escola Hohendorff - Eh! Produções. São Leopoldo, 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jRfbf0iORS4. Acesso em: 13 ago. 2019.

KERSCH, Dorotea Frank; MARQUES, Renata Garcia. Saímos do cinema de alma lavada: Multiletramentos e trabalho interdisciplinar na produção de curtas de acessibilidade midiática. Trabalhos em Lingüística Aplicada, v. 55, p. 77-99, 2016.

LAZZARETI, Angelene. Entre cinema e educação: Docência, experiência compartilhada e escola. In: SANTOS, Maria Angélica (org). Luz na docência. Porto Alegre: Editora Capitólio, 2018. p. 93-100.

LEMOS, Cristina Domingues; CAMPOS, Lucas; RAMOS, Luciana Domingues. Núcleo de Educação Audiovisual (NEA) - uma proposta de política pública de fomento à produção audiovisual na rede de educação municipal de São Leopoldo. In:Seminário Internacional de Cultura Digital. 5., 2018, Passo Fundo. Anais eletrônicos do SENID. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2018. Disponível em: https://www.upf.br/_uploads/Conteudo/senid/2018-relatos-de-experiencias/179272.pdf. Acesso em: 13 ago. 2019.

LEMOS, Cristina Domingues; RAMOS, Luciana Domingues. Curtas na escola, uma forma de dizer o que se quer do mundo e da vida. In: PEREIRA, Josias; CÂNDIDO, Eliane. São Leo em cine: a escola construindo sonhos. ERD Filmes Editora, 2018. Pelotas. E-book. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/producaodevideo/files/2018/09/S%C3%83O-LEO-EM-CINE_a-escola-construindo-sonhos.pdf. Acesso em: 13 ago. 2019.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro: 34, 1999. 264 p.

MIGLIORIN, Cezar. Cinema e escola, sob o risco da democracia. Revista Contemporânea de Educação. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/1604/1452>. Acesso em: 13 ago. 2019.

RAMOS, Luciana Domingues; BOLL, Cíntia Inês. Educação em contexto de cultura digital: potências pedagógicas e possibilidades de visibilidade para o conhecimento científico escolar. Tear: Revista de Educação, Ciência e Tecnologia, v. 8, p. 1-12, 2019. Disponível em: https://periodicos.ifrs.edu.br/index.php/tear/article/view/3570. Acesso em: 06 jan. 2021

RAMOS, Luciana Domingues; LEMOS, Cristina Domingues. Mídia e produção audiovisual: suportes para o ciclo de alfabetização. In: PEREIRA, Josias; CÂNDIDO, Eliane. São Leo em cine: a escola construindo sonhos. ERD Filmes Editora, 2018. E-book. Pelotas. Disponível em: <https://wp.ufpel.edu.br/producaodevideo/files/2018/09/S%C3%83O-LEO-EM-CINE_a-escola-construindo-sonhos.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2019.



[1] Segundo a historiadora Eloisa Capovilla, o termo capilé se refere aos nascidos na cidade de São Leopoldo, que herdaram o apelido devido ao famoso refresco de groselha, produzido por uma fábrica da cidade. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=PScAh-JtrLo&gt> Acesso em: ago. 2019.

[2] O vídeo Ação e Reação foi realizado por estudantes durante a Vídeo Oficina e está disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=iPLezEzfOwY>. Acesso em: Jan. 2021.

 [3]O vídeo Campanha do Agasalho foi realizado em 2011 e recebeu o primeiro prêmio neste Concurso. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Ab6ZWiCRwws>.

[4] Página do Núcleo de Educação Audiovisual. Disponível em <https://nucleo-de-educacao-audiovisual.jimdosite.com/>. Acesso em: Jan. 2021.

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