Helena de Castro
Amaral Vieira
é atriz e artista da dança contemporânea.
Professora de teatro na EPSJV-Fiocruz.
helena@helenavieira.com.br
Por onde começamos a falar?
Iniciamos
nosso verbete a partir da definição retirada do dicionário Houaiss on-line, passando
por alguns conceitos de Giorgio Agamben para depois refletirmos sobre a nossa
prática em mostras nacionais e internacionais como artista da dança
contemporânea entre os anos de 2006-2012 (período de grande efervescência de
editais e apoios de instituições públicas e privadas à cultura), abordaremos também
nossa experiência na Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV-Fiocruz), como professora-artista coorganizando as mostras dos estudantes das
disciplinas de arte entre 2016-2020.
O
que é uma mostra ou festival?
Mostra: substantivo feminino. Apresentação pública; ação de exibir, de mostrar ou de
apresentar alguma coisa publicamente.
Ação de representar um espetáculo: exibição de teatro, de
circo, etc.
Etimologia (origem da palavra exibição).
Do latim exhibitio.onis.
Festival: adjetivo,
substantivo masculino: festivo, alegre, aprazível. Grande festa musical. Série
de representações consagradas a uma arte ou a um artista: festival de cinema.
Festival é sinônimo
de: alegre, divertido, animado, festa, eventos
Classe
gramatical: adjetivo de dois gêneros e substantivo masculino
O trabalho coreográfico Maria José (fotos mais abaixo) foi exibido nas Mostras Rumos Dança durante três edições
consecutivas: Rumos Itaú cultural 2006-2007
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento461373/3a-mostra-rumos-itau-cultural-danca-2006-2007, na mostra Todos
os gêneros: poéticas da sexualidade www.itaucultural.org.br/todos-os-generos-poeticas-da-sexualidade
Fotos
de Ivson Miranda. Maria José Mostra Todos os gêneros: poéticas da
sexualidade (2013)
Esse trabalho foi fruto
de um questionamento sobre gênero e a sua representação cênica, antes
circunscrita à dicotomia feminino/masculino. A cena trazia a pergunta: afinal, quantos
gêneros são possíveis representarmos em nossa performance cotidiana? O corpo a
cada performance fazia uma mediação entre o público e as narrativas presentes nele,
a pessoal, da intérprete, e aquela que faz parte do mundo no qual está
inserida. Depois, a continuação do trabalho foi a obra Je Suis?! na
Mostra Rumos Itaú Cultural Dança 2012-2014 www.itaucultural.org.br/mostra-rumos-itau-cultural-danca-2012-2014. Je Suis?! Nasceu de um desabafo: “Eu sou uma mulher. Eu não sou um
homem!”, mas ao longo do processo de sua criação tal afirmação naturalmente
transformou-se em uma frase paradoxal: “Eu sou uma mulher. Eu não sou uma
mulher.”, provocando a própria artista a sair das marcas identitárias em torno
desta temática. Neste solo a música
mecânica, a voz e o espaço onde a cena acontece são elementos fundamentais com
os quais a intérprete contracena, além de procurar trazer para sua coreografia
gestos reconhecíveis da cena dos coreógrafos Trisha Brown, Pina Bausch e
Nijinski, marcantes para a História da dança.
O Instituto Itaú Cultural realizou este
programa de fomento à pesquisa durante
quase uma década e tinha como objetivo realizar o diagnóstico da situação da
dança no cenário cultural do país durante aquele período. Durante dez dias mais
de 100 artistas de todas as partes do país
se reuniram em São Paulo para
apresentarem suas produções ao público em eventos totalmente gratuitos. As
trocas ocorriam em forma de um grande congraçamento.
Je
suis?! Foto 1 de Gregório Albuquerque. Foto 2 Raquel Dias.
Para entender a curadoria dessas mostras é preciso pensar o que é ser contemporâneo. Ser contemporâneo é ser atual? Para o filósofo italiano, Giorgio Agamben no ensaio O que é o contemporâneo? E outros ensaios, não. Contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo que adere a este e, ao mesmo tempo, dele se distancia. É verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide com seu tempo. O autor instigado em refletir o momento pós-revolucionário deseja pensar em uma ação e nova política humana para além dos consensos que a filosofia e a própria política parecem tomar como estágio evolucionário da humanidade.
Entende-se aqui o contemporâneo como aquele que percebe o escuro do presente. Enquanto "moderno", para Agamben, significava tentar ver somente as luzes, contemporâneo é quem consegue enxergar positivamente o escuro, não apenas conhece-lo como ausência de luz. O corpo na dança contemporânea é um constante ambiente de devir[1] político, implicado em seu próprio tempo, inquieto, o questionador, e a luz que ele apresenta, a sua criação, é o seu devir. São corpos plenos de contradições - no melhor sentido da palavra – e ainda desejosos de compreender a multiplicidade de motivações que os cerca e os envolve. A contemporaneidade é muito difícil de agarrar e definir, mas o que percebemos nas obras contemporâneas é a vontade política de falar sobre seu tempo. Elas se constituem por que de algum modo respondem aos tempos que são nossos, não se definem, portanto, por algo que lhe seja essencial, ou por algo que seja íntimo, mas é mais pelo fato de corresponderem a um tempo que fala sobre nossa época. Pode-se dizer de uma obra de dança contemporânea, ou menos contemporânea, se de algum modo ela trouxer algo que tem a ver com o presente das nossas preocupações, e que ainda nos coloque diante de um enigma desconhecido, sobre o qual não temos toda a capacidade para decifrar. Nem todo o trabalho de dança da nossa contemporaneidade é contemporâneo no mesmo sentido do Agamben, mas nas mostras apontadas acima, podemos encontrar uma diversidade de trabalhos que certamente correspondem à definição de Agamben.
Contemporaneidade e atualidade não são sinônimos. A atualidade é o discurso da comunicação social que tende a identificar o que acontece hoje com aquilo que é atual. A contemporaneidade ultrapassa os dias de hoje, pode rebuscar coisas do passado e elas podem ser tão contemporâneas como as coisas que vivemos hoje. Em contraposição, uma obra que não seja contemporânea tem-se, diante dela, a construção de discurso em que a história está muito presente, em que há uma série de referências que são de natureza da época. Entre o que é apresentado e o meu presente há narrativas e histórias que me permitem colocar o que vejo num determinado contexto.
A dança, portanto, não é contemporânea como se houvesse algo que estivesse dentro dela. Nada tem a ver com isso, tem a ver com algo que acontece dentro de um contexto que responde ou não às nossas perguntas, mas nos inquieta, perturba nossa tranquilidade, é extemporânea e intempestiva. Que dança pode ser essa a perturbar nosso tempo, desafiar nosso presente, e a questionar nossa contemporaneidade?
A geração de coreógrafos europeus, conhecida como as novas vanguardas europeias (da qual fazem parte os franceses Jérôme Bell, Xavier Le Roy, Boris Charmatz, o alemão Tom Plischke, e a espanhola Maria La Ribot, para citar apenas alguns), é reconhecida como motores de grandes transformações no contexto da dança contemporânea internacional a partir dos anos 1990. Guarda correspondências e ecos na obra da artista portuguesa, Vera Mantero, https://www.orumodofumo.com/pt/artistas/vera-mantero_2 grande referência da sua geração. É preciso colocar que há algumas características da geração de Mantero e a Nova Dança Portuguesa que apontam muitas semelhanças com a história da dança contemporânea no Rio de Janeiro durante o mesmo período, 1990, da qual os trabalhos mencionados acima, Maria José e Je Suis?! São tributários. Essa geração protagonizou o Festival Panorama de dança: http://panoramafestival.com, a mostra internacional de dança mais importante do país, no calendário oficial da prefeitura da cidade desde 1992.
Naquela altura senti que havia em mim um lado de
pensamento que impedia o movimento, explica a coreógrafa, sobre Talvez ela
pudesse dançar primeiro e pensar depois, que continua, ainda hoje, a
interpretar esse solo. Agora, acho que a questão já não é impedir, mas o
pensamento continua a ser parte intrínseca do meu trabalho. Talvez ela pudesse
dançar e pensar ao mesmo tempo, pelo menos isso.
Vera Mantero
O título “Talvez ela pudesse dançar
primeiro e pensar depois” é um bom exemplo sobre o contemporâneo citado neste verbete,
embora tenha origem na peça “Esperando Godot”[2], chama atenção por
reportar a um sentimento presente ao público da obra contemporânea em geral (e
ao da dança, em particular); o de identificar nas obras da dança contemporânea
uma exaustão do pensar e refletir, um esvaziamento de sentido dado à imensa
vontade de procurar explicações em muitas leituras e discussões. Sentíamos que
os movimentos sofriam com isso uma inadequação em relação à palavra. A partir
do título iniciamos uma reflexão sobre os estranhamentos que a dança
contemporânea provocava no público. Em sua justa e legítima busca de
entendimento, a dança contemporânea veio ao longo dos anos (precisamente a
partir da dança pós-moderna americana e em seguida pela Nova Dança Europeia)
questionando sua estrutura, os movimentos fixos, a repetição, o puro
virtuosismo, a vaidade excessiva e vazia da dança e, em certo momento, o
pensamento tornou-se paralisante para os criadores. A dança que consideramos politicamente contemporânea é herdeira
da arte de vanguarda, do No-Manifesta,
da estética da recusa, pós-ideia de opressor e oprimido de Marx, porém ainda
carregada de confronto e luta, mas que assume, assim como o termo
contemporâneo, uma velocidade impossível de agarrar-se e, portanto, de definir.
Há, nessa geração dos artistas dos anos
1990-2000, um movimento de atualização das ideias, práticas e reivindicações
das vanguardas dos anos 1960 e 70, nas quais o político e o estético estão
juntos. Embora a dança pós-moderna americana tenha introduzido neste panorama
diversos parâmetros importantes, foram retomados pelas novas vanguardas, e,
embora haja muito interesse pelo debate crítico em torno do corpo, a produção
cênica a partir da reflexão se dá de outra maneira. Esse movimento é muito
baseado nos coreógrafos intérpretes, ou nos bailarinos que trabalhavam para
coreógrafos, e não propriamente faziam parte de uma companhia. Os grupos são
montados e desfeitos com mais rapidez. A
reflexão crítica desta geração deu origem a experiências de valorização do
conceito em detrimento de pesquisas puramente formais; de imagens de corpo que
sustentam os modelos de representação dominantes na dança, na mídia e na
sociedade. A desespetacularização e a
transdisciplinaridade, e não o ativismo sociopolítico (em cena), são aspectos
marcantes em algumas obras deste presente estudo. O movimento da Nouvelle Danse traz para o cenário da dança
contemporânea tanto no Rio como em Lisboa, traz uma perspectiva de autonomia na
vida dos artistas.
No intuito de pensar na recepção dança contemporânea (poderia ser em geral, já que o
estranhamento se estende à recepção da arte contemporânea como um todo): o que
é dança/teatro e o que não é propriamente dança/teatro? Uma dança/teatro que
comporta um mundo de possibilidades, mas há um momento em que as experimentações
se esgotam; se repetem e começamos a nos perguntar – enquanto público - se
aquilo é ou não dança/teatro. Há três aspectos
que nomeadamente aparecem como
causadores da rejeição, a saber: a interdisciplinaridade com outras áreas (música
e vídeo); os solos e o nu, o último e, de longe, o mais rejeitado.
Para Cristina Grande[3] (programadora do museu de
Arte Contemporânea da Fundação Serralves, na cidade do Porto no ano de
2011), https://www.serralves.pt/atividades-serralves/2102-palavra-de-artista-26-fev/
estar em um ambiente de arte contemporânea é viver cotidianamente essa questão.
A dificuldade é do ponto de vista prático e de comunicação, ou seja, em como
definir o projeto que é apresentado no museu: muitos artistas usam “projetos”,
outros “performance” e outros “peça”.
Até a assinatura, segundo ela, já é uma questão para a dança contemporânea;
diluiu-se a questão da individualidade e da autoria. Coreógrafos, juntamente
com os intérpretes, são eles próprios os autores da peça. Como há nos trabalhos
da arte contemporânea uma diluição da autoria e da especialidade, muitas vezes
na programação do museu não se coloca a disciplina, ou então indica-se:
dança/...; música/...; vídeo/... . As peças são muito mais trabalhos em que os
gêneros artísticos são incluídos e todos eles são importantes e fundamentais,
sem hierarquia. Para Cristina, é decisivo que a programação de artes
performativas de um museu de arte contemporânea como o da Fundação Serralves
considere fundamental uma programação que modifique as pessoas. Carece de
sentindo, no seu entender, uma programação que não inquiete o público. Sair do
espetáculo manifestando uma emoção, aborrecimento ou frustração é, para ela, um
fator positivo, pois é o que espera quando organiza sua programação. Há peças
que se comunicam mais com o público no sentido de que são mais claras, ou
porque são mais atuais porque falam de algo que afeta nosso presente, ou são
mais diretas. Há outras que são mais conceituais, distantes, ou que exigem
leituras.
Sobre esse aspecto, Gil Mendo, programador
da Fundação Culturgest em Lisboa e um dos personagens centrais no
desenvolvimento da dança contemporânea em Portugal, responde que tenta
esclarecer o possível para que seu público não seja enganado quanto ao que vai
assistir, mas não quer lhe tirar a surpresa. Faz referência a um reconhecido
coreógrafo (da mesma geração de Vera), João Fiadeiro, que não aceita, de
maneira alguma, que se anuncie seu trabalho de outra maneira que não seja como
dança, por entender que, se ele é uma pessoa da dança, o que está fazendo é
dança. Mendo diz não frequentar espetáculos com qualquer tipo de preconceito
sobre o que deve ser a dança: “Acho das coisas mais gratificantes, para mim,
pelo menos, como espectador, é sentir-me perplexo, surpreso”.
O
nu na dança/teatro contemporâneo
Quanto à rejeição ao nu, Mendo diz
enxergar a nudez sempre muito justificada. Quando ela aparece é totalmente
lógica e tem uma razão de ser. Eventualmente, nas situações, nas quais, o nu é
gratuito, ele é esquecido rapidamente. Para ele, na maior parte das vezes em
que o nu aparece tem a ver com uma verdade do corpo que não se justifica estar
coberto, ou, por outro lado, porque não se justificaria que os corpos
estivessem vestidos. Para Gil, utilizar o nu é o mesmo que utilizar os
figurinos. Há muitas situações em que não se justifica o figurino.
Na obra coreográfica “António Miguel”, de Miguel Pereira https://www.orumodofumo.com/pt/em-circulacao/pecas/antonio-miguel-de-mi_17,
artista da dança contemporânea portuguesa e parceiro de Mantero na produtora
Rumo do Fumo, há o debate sobre o nu
deserotizado da dança contemporânea, o que interessou Miguel quando começou a
desenvolver seu trabalho foi a desmistificação de um corpo. No sentido do corpo
que é codificado, um corpo que chamamos de normatizado, lhe interessava olhar
para a ordem, para o sistema no qual construímos os códigos de comunicação e de
existência, e tentar desmitifica-los, tentar subverter a ordem em que o nu é um
tabu. Miguel se perguntou: “Por que um corpo nu tem que ser um tabu, quando nós
nascemos e morreremos nus? Por que há esse tabu? Por que não podemos assumir
esse corpo? Por que há esse pudor e medo?”. Ele recorre ao nu não para provar,
mas para a si próprio e ao seu público, que afinal, o nu não tem essa carga de
erotismo exacerbado que lhe é dada, por preconceito. Em seu trabalho, o corpo
nu em cena é natural. É como o corpo de uma criança nua brincando na praia. Em seus
trabalhos, Miguel deseja que seja possível poder alterar a normatização, e
olhar para o corpo de uma maneira banal, deseja quebrar com o peso ou carga que
o corpo nu geralmente tem em nossas sociedades. Mesmo que esteja associado ao
erotismo, não deveria estar só associado ao erotismo, e ainda que sim, não
devia ter a carga que tem, de coisa proibida. Quando recorre ao nu nos seus
espetáculos, diz ele: “eu estou nu, ok. Vocês podem ficar impressionados com a pila
(pênis em Portugal), com o sexo, se é maior, menor, podem ficar em um primeiro
momento, numa primeira análise presos ao tamanho... por que é tudo isso que as
pessoas têm na cabeça, é nossa cultura, não é? Mas passado um tempo você já
esqueceu isso, está vendo apenas corpos nus, como poderia estar a ver um corpo
vestido.”
Na visão de José Gil, que vai ao encontro
a nossa, a dança realiza da maneira a mais pura
a vocação de agenciar o desejo. O que explica, sua presença tão poderosa,
porém, em sua visão, muitas vezes deserotizada. Se a dança deserotiza os
corpos, é porque o movimento dançado se tornou desejo; desejo de dançar, desejo
de desejo, desejo de agenciar.[4] A noção de pureza é para
esse trabalho, um conceito complicado, pois nos remete a ideias de perfeição, ideias
canônicas de beleza, e de pouco confronto e questionamento. Difícil dizer se é
mesmo possível separar a nudez da sexualidade.
Trazemos
para o nosso verbete outra experiência,
que não a de artista, mas de organizadores.
O Festival Som e Cena é um exemplo de mostra artística estudantil que
nasce na EPSJV. Em
2011, tem início na escola o Festival de Música, organizado pelos professores
dessa disciplina, Marco Antônio Santos e Jeanine Bogaerts. Eram reservados para
esse fim dois dias letivos para as apresentações dos alunos de música, para
oficinas com profissionais convidados, além de mostra de filmes e rodas de
conversa. A partir de 2015, a professora de teatro à época, Carolina Caju, é
convidada a participar da organização e o Festival passa a ter o nome que tem
até hoje, Som e Cena, tornando-se também, uma mostra de teatro graças a uma
demanda dos estudantes que desejavam ter um espaço para apresentar o trabalho teatral
desenvolvido em sala de aula. Em 2016, como professora que entra no lugar de
Carolina Caju, juntei-me à coordenadora do festival, Jeanine Bogaerts, para a
coordenação da mostra.
O
Som e Cena tem como principal objetivo garantir espaço onde os alunos possam
apresentar os trabalhos desenvolvidos em sala de aula e ter contato com músicos
e atores convidados, profissionais ou amadores. Buscando abordar temas de
interesse dos alunos, o projeto envolve, além dos estudantes do Ensino Médio e
da Educação Jovens e Adultos (EJA), trabalhadores da EPSJV.
A
mostra na escola, apesar de não ter a mesma função de uma mostra profissional,
guarda algumas semelhanças: refletir sobre temas da atualidade através
de práticas artísticas, promover o encontro de estudantes de toda a escola com
profissionais das artes estimulando a discussão sobre a importância da arte no
currículo do ensino básico através de oficinas de música, dança, pintura e
poesia. Procura estimular, do mesmo modo, interações entre corpo docente, discente
e trabalhadores. Por último, mas não menos importante, proporcionar um momento
de congraçamento no ambiente escolar fora da sala de aula, promovendo, assim
como em qualquer festival, uma suspenção do cotidiano, onde de forma breve e
intensa, deixamos aparecer muitas considerações intempestivas (Grifo
nosso a partir de um texto de Nietzsche, 1874); isto é, uma maneira de enxergar
nosso presente guardando um distanciamento, elaborando reflexões.
A
mostra na escola já ocupou diferentes espaços. Já houve apresentações no teatro
do Museu da Vida, localizado no campus de Manguinhos da Fiocruz, no pátio e no
auditório da escola. Há alguns anos a escola recebe o Cap-UFRJ e, a parir de
2019, passou a receber o Pedro II de Realengo. A cada ano as coordenadoras
levam para os estudantes um tema que tenha sido discutido na semana de
planejamento ou que seja do interesse das turmas trabalhar. Normalmente a
mostra é finalizada com uma grande festa em que músicos ou atores externos são
convidados para encerrar o encontro com uma grande confraternização. Já
recebemos para esse momento nomes como: o quarteto de saxofones Quartessência,
os Cancioneiros do IPUB, a cantora Larissa Luz, a banda El Efecto, o músico
Geraldo Júnior, a banda feminina Orquestra Lunar, o grupo de teatro da Maré Cia
Marginal, o grupo do Teatro do Oprimido da Maré, além da participação de grupos
amadores do Colégio de
Aplicação da UFRJ e Pedro II de Realengo.
Temas abordados:
2011, 2012 e 2013 – Sem um tema específico -
2014 – 50 anos da Ditadura Militar -
2015 – Quero mais Saúde -
Passa
a se chamar Som e Cena e se integra com Teatro. A partir do tema levantado
pelos alunos as turmas fizeram seleção de repertório relacionado.
Apresentações e oficinas realizadas por alunos e convidados externos. No pátio circular da escola aconteceram a apresentação conjunta de alunos de teatro e música da peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, a apresentação livremente baseada em Romeu e Julieta, de William Shakespeare e um show com Geraldo Júnior.
2017 – Identidade
Apresentações
e oficinas realizadas por alunos e convidados externos. Adaptação e
apresentação da peça Bailei na Curva, de Júlio Conte e apresentações da
orquestra Lunar e da cantora Larissa Luz.
2018
– Temas livres
As
turmas de teatro apresentaram cenas a partir do conto chinês A arte do gato
maravilhoso; cena a partir do filme O Baile, de Ettore
Scola, roteiro de criação coletiva; e
uma adaptação da peça Aurora da minha vida, de Naum Alves de Souza com
depoimentos de adolescentes sobre saúde mental. Convidado musical externo a
banda El Efecto.
2019 – O tempo
Alunos
de teatro apresentaram cenas a partir da técnica do teatro jornal para
responder à frase “Que tempos são esses em que temos que defender o óbvio”, de
Bertold Brecht. Intercâmbio com o Colégio Pedro II de Realengo.
2020- Descolonização dos Saberes-
Mostra reúne trabalhos de todas as disciplinas
de artes.
A partir do tema Descolonização dos saberes
montamos a exposição virtual numa página:
https://pt-br.padlet.com/artespoli2020/lscgfgabzzbg3zqy (print da página acima). Nesse espaço virtual colocamos todas as
produções artísticas dos estudantes durante o 1º trimestre de 2020, período que
intitulamos Educação Remota Emergencial (ERE). A professora Veronica Soares, de Artes
Visuais, junto com o estagiário Fernando Rodrigues, do projeto Investigações
Fotográficas do Colégio de Aplicação da UFRJ, organizaram uma outra forma de
mostra, a publicação do livro virtual Lugares de Fala: https://issuu.com/fernandorodrigues7/docs/lugar_
de falas. Esse
trabalho foi feito com a 2º ano do ensino médio, utilizando todo o material
produzido por eles: desenhos, poemas, vídeos e intervenções fotográficas a
partir da exposição sobre bonecas negras de um acervo do século XIX (atividade
pedagógica em que apresentamos aos estudantes uma série de fotos do séc. XIX em
que crianças e bonecas são fotografadas juntas). O debate sobre racismo, com o
qual muitos/as estudantes estão bastante acostumados na escola, apareceu sob a
forma de desenhos, poesias e fotografias. Além dos trabalhos individuais, mais
plásticos/visuais, nós procurávamos incentivá-los para trabalhos cênicos, em
duplas ou em interação conosco, as professoras. Tentávamos, assim, uma troca desierarquizada
na medida do possível. Outros curtas também foram produzidos a partir dos
textos dos estudantes e de participações das professoras e estagiários de artes
cênicas da UNIRIO (através de convênio firmado em 2019, recebemos estudantes de
licenciatura em Teatro dessa instituição cursando a última disciplina de
estágio obrigatório, este grupo nos acompanhou de setembro a dezembro de 2020).
Os trabalhos não apenas demonstravam outras possibilidades de criação
artística, as cênicas, mas também apontavam para uma rica troca de saberes.
Considerações Finais
Chegamos ao final do nosso verbete e o que queríamos deixar como contribuição ao dicionário é a dimensão política encontrada nos encontros proporcionados pelas mostras e festivais, tanto em caráter profissional, mostras do Instituto Itaú Cultural como as Mostras Som e Cena na EPSJV. Podemos resumir em poucas palavras situando-os no desentendimento de Ranciére: lugar no qual a filosofia encontra ao mesmo tempo a política e a poesia, isto é, distribuição de maneiras de perceber e falar sobre o mesmo processo de subjetivação. A cultura racionalista vinda dos iluministas, criticada por Nietzsche, talvez tenha nos acostumado a acreditar que onde há movimento não há pensamento, e onde há filosofia há transcendência e não imanência. Essa questão foi pelos artistas da dança/teatro politicamente contemporânea, superada. Se a filosofia é um exercício de pensamento a dança e o teatro também são. O pensamento na dança aparece corporalmente. Há uma empatia entre questões filosóficas e questões propostas por criadores de dança. O que aproxima é a prática da reflexão que se dá por estratégias diferentes. A filosofia usa o texto verbal, a dança usa movimento. O pensamento não é só racional. Os artistas não precisam, necessariamente, buscar suporte em outras disciplinas para serem visíveis.
Nossas considerações acerca da dimensão política da arte pode ser respondida com as ferramentas oferecidas pela reflexão filosófica, que apontou para o conceito de devir e de contemporâneo para localizar o que é a arte no nosso momento histórico. Se perguntávamos como era possível, em nosso momento atual, reativar a potência artística inerente à ação política, e, como se operaria a instauração dos possíveis na dança, descobrimos que festivais/ mostras podem fazê-lo.
A conclusão que foi sendo construída ao longo deste verbete foi, também, a compreensão do conceito de contemporâneo de Agamben como o de não institucionalização dos desejos e lugar privilegiado de potência tanto política quanto estética.
A crítica e a recepção à dança e ao teatro contemporânea, o diálogo contínuo entre crítica e artistas que participaram das mostras do Itaú Cultural, renderam à nossa história recente uma trajetória sólida, pelo menos no campo da dança em um país que ainda não investiu em políticas públicas para artes, e que lamentavelmente, nos últimos anos, conseguiu desmantelar as poucas iniciativas que ainda resistiam. Ao escrever esse verbete pensamos em trazer ao conhecimento das gerações mais jovens um período fértil, décadas 1990 e 2000, para as artes contemporâneas.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Argos. Chapecó, SC. 2009.
GIL, José. Movimento Total. O corpo e a dança. Relógio D`Água Editores,
Lisboa. 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações intempestivas. Editorial
Presença e Martins Fontes, Lisboa, 1976.
RANCIÉRE, Jacques. O Desentedimento. Editora
34. São Paulo.2005.
Tese
VIEIRA, Helena de Castro Amaral. O corpo revoltado:
considerações acerca da dimensão política em algumas obras de Vera Mantero.
UNIRIO, maio de 2012.
[1]
Embora
o conceito de devir seja bem mais complexo, faço um pequeno recorte para devir retirando-o da ideia deleuziana, e
escolho duas afirmações: a) devir é nunca imitar, nem se conformar a um modelo;
b) não abandonar o que se é para devir outra coisa (imitação, identificação);
c) conteúdo próprio, máquina ou agenciamento de desejos.
[2] Transcrevo
aqui o trecho: “Vladimir: Ele pensa? Pozzo: Certamente. Alto. Ele até costumava
pensar lindamente, eu poderia ficar horas escutando-o. Agora... (ele treme).
Ficou pior para mim. Você gostaria que ele pensasse alguma coisa para nós?
Estragon: Eu preferia que ele dançasse, não seria melhor? Pozzo: Não
necessariamente. Estragon: Não seria, Didi, mais divertido? Vladimir: Eu
gostaria de ouvir ele pensar. Estragon: Talvez ele pudesse dançar primeiro e
pensar depois, se isso não for muito para pedir a ele”. (BECKETT: 1956, p.39).
[3]
Coordenadora do Serviço de Artes Performativas
da Fundação de Serralves desde 1990, com a responsabilidade executiva e de
produção de atividades culturais paralelas às exposições e de programas nas
áreas da Música Experimental, do Cinema e do Vídeo, do Jazz, da Performance e
da Dança Contemporânea. É responsável pela programação de Dança Contemporânea e
Performance do Auditório do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, desde
2000. Integra desde maio de 2010 o comité de peritos dos Fundos Roberto Cimetta
para as áreas da Dança e Performance.
[4] Gil: 2001, 73.
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