Introdução
O "celular" há muito tempo já não é simplesmente um aparelho
que permite fazer ligações. É o "smartphone", com uma capacidade de
processamento infinitamente maior que os computadores que ocupavam grandes
salas nos anos 1970, oferecendo múltiplas funções e possibilidades. Ao mesmo
tempo, para algumas destas, é necessário que o aparelho tenha um considerável
espaço de armazenamento de dados, o que restringe quem consegue fazer uso de
todas as suas funcionalidades. O acesso à internet também é um desafio, especialmente
em áreas com menos antenas, ou em que grupos armados impõem certos serviços ou
impossibilitam que outros cheguem à população[1].
A obsolescência programada é mais um entrave, pois, por mais poderoso que seja
o hardware, o software pode se tornar impossível de usar devido às
atualizações, que demandam cada vez mais processamento[2].
Ainda assim, o celular está fortemente presente nas vidas de muitas
pessoas hoje, especialmente dos jovens. A PNAD contínua por domicílios[3]
mostrou que, em 2019, 94,0% dos domicílios tinham telefone celular, com maiores
números nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Esta mesma pesquisa mostrou
que 81% das pessoas com 10 anos ou mais tinham celular para uso próprio e que
97% dos estudantes participantes da pesquisa utilizavam o celular para acessar
a internet (98,5% na rede privada e 96,8% na rede pública). Em 2019, 95% das
crianças e adolescentes entrevistados pela pesquisa TIC Kids Brasil[4]
acessavam a internet pelo celular, 58% deles exclusivamente por esse aparelho.
A Pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box[5]
mostrou que em 2021 a pandemia e o isolamento social decorrente ocasionaram um
aumento na proporção de crianças com aparelho próprio: nas famílias em que os
responsáveis possuem smartphone, 79% das crianças de 10 a 12 anos também têm um
aparelho próprio, dos quais 71% têm chip de operadora, que viabiliza o acesso à
internet.
Com ou sem conexão à internet, o celular e o tablet oferecem múltiplas
possibilidades de fruição e criação audiovisual, permitindo pensar ações que
contribuam para uma Educação Audiovisual crítica e criativa. Ainda assim,
persistem não apenas desconfianças e desconhecimentos mas também legislações
proibindo ou dificultando o uso desse recurso em contextos escolares, embora
algumas venham sendo revistas em prol da autonomia docente[6].
Entretanto, é necessário ampliar o olhar para compreender que:
O dispositivo móvel celular é veículo de leituras,
escritas e interações. O que possibilita seu uso é o ‘como ver’ esse objeto.
Podemos vê-lo como copo vazio ou cheio de ar, como nos convida o cantor e
compositor Gilberto Gil (1977)47 ao cantar: É sempre bom lembrar /
Que um copo vazio / Está cheio de ar. O ar é um entre que se move. Sua
mobilidade, flexibilidade, permeabilidade, o fazem espaço de acontecimento.
Relacionamos certa condição do celular ao copo cheio de ar, no sentido em que
é um objeto que encerra um espaço, em que o ar se oferece a uma diversidade
de conversas consigo e com o outro. Às vezes inventário; às vezes bola de
cristal, no sentido de poder registrar e recuperar memórias do passado,
registrar e comunicar o presente, contribuir para planejamentos futuros; e às
vezes fábrica de si, na medida em que se ver em selfs, fotos antigas e atuais,
em diversas situações, promove distanciamentos maiores do que os espelhos.
Assim, esses aparelhos/dispositivos possibilitam comover e co-mover, suscitam
possibilidades de ser, aprendizados de si e do outro, necessariamente cheios de
signos e simbolismos. (OLIVEIRA, 2019).
Como salienta Migliorin (2015), numa perspectiva freireana e crítica, o
próprio objeto celular, tão cotidiano e por isso mesmo próximo das realidades
dos estudantes, pode ser ponto de partida para discussões, pesquisas e
construção de conhecimento:
(...) quando falamos dos dispositivos móveis em sala
de aula – celulares, pads e pods –, por exemplo, podemos devolver a nós e aos
alunos perguntas que colocam os celulares em uma rede que constitui as
condições de possibilidade para que aquele celular esteja ali: de onde vem o
chip? Quem fabrica? Como chega a energia? Quem ganha dinheiro? Quanto ganha o
trabalhador que fabrica o celular, qual é a energia usada para que o celular
chegue até o shopping mais próximo, quem administra as redes de comunicação?
Trata-se de uma conexão que forma contexto. (...) Nessa montagem, a partir de
um objeto, tracejamos as múltiplas operações políticas, econômicas,
energéticas, ambientais etc., para que aquele objeto exista ali. (2015, p. 82)
Uma segunda abordagem, para o autor, seria na direção de “criar o que não
existe”: “celulares passam a fazer arte, conectar manifestantes, estabelecer
relações pessoais randômicas e não roteirizadas, operar na transformação das
indústrias da música e do audiovisual.” (2015, p.83). O próprio Migliorin ressalta
que essas duas dimensões, uma mais ligada ao contexto e outra à potência, não
são excludentes, e ambas podem abarcar dimensões mais individuais e mais
coletivas.
No presente verbete, vamos explorar mais a fundo algumas possibilidades
mais voltadas à segunda dimensão, de criação, bem como de reflexão sobre as
linguagens audiovisuais que criamos e acessamos por meio do objeto celular.
Assim, alguns exemplos de atividades com celular em contextos de Educação
Audiovisual seriam:
-
analisar e discutir fotografias e vídeos
-
fotografar
-
escrever roteiros
-
gravar áudios (gravar podcasts, diálogos, narrações,
sons ambientes)
-
pesquisar e editar músicas e efeitos sonoros
-
produzir animações
-
editar vídeos
-
compartilhar suas produções
-
trocar experiências com outros estudantes
-
colaborar em projetos coletivos
-
analisar, discutir e criar postagens em redes sociais
-
jogar jogos digitais e jogos de tabuleiro digitalizados
-
analisar e discutir jogos e experiências vivenciadas
com eles
-
criar jogos digitais
A seguir, exemplificamos e discutimos algumas dessas possibilidades,
trazendo exercícios desenvolvidos na disciplina de Audiovisual do Ensino Médio
da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. A disciplina é uma opção das
disciplinas de Artes, sendo de escolha dos estudantes cursar essa linguagem. Ao
longo dos 3 anos, busca-se uma educação do olhar como crítica da imagem, por
meio de módulos que trazem diferentes ênfases, como a discussão de Imagem
Contemporânea e dos Elementos de Significação na linguagem audiovisual,
diversos exercícios, bem como um aprendizado da linguagem audiovisual mediante
um processo coletivo de produção que inclui desde a construção do argumento
e roteiro pela pesquisa, até a produção, filmagem e edição[7].
Reflexão e crítica acerca das
imagens de si nas redes sociais
O principal uso do celular pelos jovens com acesso à internet é das redes
sociais, nas quais as imagens exercem um papel fundamental: em 2013, o Facebook
já tinha mais de 250 bilhões de imagens armazenadas (SMITH, 2013). As postagens
mais ativas no Facebook (as que recebem mais cliques e comentários) são
iniciadas por lives, imagens e vídeos (SOCIAL BAKERS, 2019). Seja como veículo
de propagandas, afirmação de discursos ou compartilhamento de momentos pessoais,
constituem diversos contextos de conversação, interação e trocas sociais, que
podem se tornar uma potente pauta de reflexão e aprendizado quando se trata de
Educação Audiovisual.
A apropriação de ferramentas de Comunicação Mediada por Computador, em
rede, pelos sujeitos, envolve convenções simbólicas, a criação de rituais e
a negociação criativa de contextos na constituição de conversações
(RECUERO, 2012). Como elementos principais, os sites de redes sociais contêm
formas de individualização como os perfis, “que permitem aos indivíduos
estabelecer quem são e convidar outros a interagir” (RECUERO, 2012, p. 138), e
conexões, que permitem visualizar os componentes das redes ligados a cada
perfil. O perfil de um site de rede social participa das conversações ao
fornecer “pistas” para os interagentes, de forma análoga ao corpo durante uma
conversação face a face. Porém, diferente desta, o perfil é uma
representação de si perante uma audiência muitas vezes mutante e imaginada,
porque não restrita às suas conexões diretas (BOYD & HEER, 2006).
O usuário de uma rede social seleciona a fotografia que lhe permite “dar
a vida” que deseja a si mesmo, buscando coerência com a impressão de si que
deseja construir para o outro, muitas vezes esse “outro” imaginado, que carrega
critérios avaliativos. Nas redes, cada fotografia participa como um novo
elemento no processo de construção e negociação da identidade: “este sou eu
hoje”, amanhã posso ser outro, ou o mesmo de um novo ângulo, com uma luz mais
favorável, uma edição diferente, um novo filtro recém-descoberto, associado a
outras pessoas ou a objetos significativos. Todos esses elementos participam na
construção do discurso que desejo transmitir sobre mim. Diante da
multiplicidade inerente à produção digital de imagens, o descarte e recriação
de autorretratos, especialmente entre o público jovem, também se torna
infinito, tantas quantas forem as novas formas de se apresentar/representar
perante os outros. Até mesmo a opção de não se mostrar, recusando a
participação em tais redes, ou a representação de si por meio de imagens de
aspectos de sua vida e cotidiano, passa uma “imagem”, propondo sentidos
múltiplos acerca de si.
Ao participar dessas redes, diante da demanda de criação e representação
de si segundo padrões hegemônicos em busca de “engajamento”, nos colocamos sob
múltiplas formas de controle, onde, conforme o alerta de Deleuze sobre as
sociedades de controle (1992),
o poder deixa de ser exercido pelo “molde”, pelo
confinamento do homem em espaços fechados, e passa a ser modulado, feito de
forma atomizada, em constante atualização, realizado por meio de tecnologias,
por computadores que detectam as posições de cada um, em uma sociedade em que o
marketing é o instrumento de controle social, reconstruindo e propagando
cada vez novas formas desejáveis de ser.
Precisamos seguir em frente conscientes de que o uso de um site de redes
sociais implica nosso envolvimento nessa trama, tornando-nos, ao mesmo tempo,
consumidores, produtores e produtos. Como Deleuze destaca, cabe aos jovens
descobrir “a que estão sendo levados a servir” (1992, p. 226). Ao que Sibilia
acrescenta:
A eles incumbe a importante tarefa de “inventar novas
armas”, capazes de opor resistência aos novos e cada vez mais ardilosos
dispositivos de poder; criar interferências, “vacúolos de não comunicação,
interruptores”, na tentativa de abrir o campo do possível desenvolvendo formas
inovadoras de ser e estar no mundo. (2008, p. 10)
Dessa forma, o exercício "Álbum de Si"[8],
proposto pelo prof. Gregório Albuquerque e
desenvolvido na disciplina de Audiovisual na EPSJV, pode ser um exemplo
de um possível trabalho acerca dessa temática com dispositivos móveis como o
celular: “escolha de cinco fotos necessariamente publicadas nas redes sociais,
entendendo o motivo pelo qual realizou o compartilhamento na época e o porquê
da seleção da foto no momento atual da escolha.” (ALBUQUERQUE, 2020, p.91). A
seleção das fotos e as questões colocadas, como a legenda e data; o motivo da
postagem; o motivo da escolha; bem como se postaria novamente, provocam um
distanciamento em relação às imagens produzidas e compartilhadas e proporcionam
a reflexão acerca dos motivos e das pressões sociais colocadas no
compartilhamento de imagens nas redes. a discussão dos padrões passa, ainda,
por perceber o movimento de regulação proporcionado pelas interações e
confirmações do “engajamento”: “se foi confirmado que a imagem foi vista por
várias pessoas e ela possui determinado padrão e todas as vezes esse padrão
é muito observado, a consequência é segui-lo” (ALBUQUERQUE, 2020, p.94).
Como defende Barthes: “A “vida privada” não é nada mais que essa zona de
espaço, de tempo, em que não sou uma imagem, um objeto. O que preciso defender
é meu direito político de ser um sujeito.” (1984, p.29). Nas redes sociais, a
vida privada que Barthes defende e demanda para si torna-se objeto, imagem, que
precisa ser compartilhada e visualizada, a fim de ganhar sentido. Dentro de uma
sociedade que demanda a interação, a repetição da postagem, a atualização e
exibição de si, devemos buscar não apenas instrumentalizar os jovens com
teorias e técnicas de como obter melhores fotos para os seus propósitos, mas
discutir sobre a construção da fotografia e seus usos sociais, considerando que
esses jovens estão transitando entre vários lugares: como Operator, Spectator e
Spectrum: produtores, consumidores e objetos da fotografia (BARTHES, 1984).
Experimentação e discussão sobre
jogos
Segundo dados da Pesquisa Game Brasil 2021, 72% dos brasileiros costumam
jogar jogos digitais, e, destes, 41,6% têm o smartphone como plataforma
preferida para jogar. Embora a visão do senso comum possa ser a de que os jogos
na escola devem ser algo restrito à infância ou um passatempo que distrai os
estudantes de um “conteúdo” tido como “sério”, é importante lembrar que os jogos
fazem parte de um contexto curricular-cultural juvenil, em que o prazer se
associa ao conhecer, desenvolvem-se comportamentos, saberes, habilidades,
competências, valores, atitudes, sociabilidades e identidades (MOITA, 2006).
Os jogos digitais fazem parte de uma história mais ampla dos jogos como
um todo, que está intimamente ligada à
história da humanidade. Numa definição que busca focar nos jogos digitais em
sua relação com a história dos jogos em geral, Juul (2019) afirma que:
Um jogo é um sistema baseado em regras com um resultado
quantificável e variável, no qual a diferentes resultados são designados
diferentes valores, o jogador exerce esforço para influenciar o resultado, o
jogador se sente emocionalmente conectado ao resultado e as consequências da
ativiade são negociáveis. (2019, p. 45)
Essa definição busca integrar três perspectivas sobre os jogos: 1) o
sistema configurado pelas regras; 2) a relação entre o jogo e o jogador; e 3) a
relação entre o jogar e o resto do mundo. Salen e Zimmerman (2003) também
distinguem três camadas em seu estudo, extremamente próximas às propostas por
Juul: as regras, a interação lúdica e a cultura.
Considerando a importância dos jogos digitais na cultura ocidental e nas
sociabilidades de crianças e jovens, alguns autores já propuseram tomar os
jogos digitais como objeto de aprendizagem, constituindo um “letramento lúdico”
ou “ludoletramento”. No campo da
Educomunicação, a ideia de letramento relaciona-se aos jogos enquanto canais de
diálogo social; forma de “empoderamento” em relação às tecnologias, ao design e
às mídias; forma de expressão simbólica; espaço de expressão do contexto local
e de aprendizagem. Para Zagal (2010), o letramento relativo aos jogos (“ludoliteracy”), teria três fases: aprender
a jogar; aprender a compreender significados relacionados aos jogos e aprender
a criar jogos. A segunda fase inclui, ainda, diferentes contextos para
compreensão dos jogos: como artefatos culturais, tecnológicos, e como conjunto
de componentes que interagem e facilitam experiências para os jogadores.
De maneira análoga, o “modelo dos 3Cs”, referenciado por outros autores
(ALBUQUERQUE, 2016; VAN ZWIETEN, 2012; ZAGALO, 2010), baseia-se na proposta de
Buckingham para um letramento social crítico relativo aos jogos, incorporando
as dimensões cultural, crítica e criativa. Enquanto as duas primeiras seriam
mais relativas ao consumo, a última aponta para a criação de jogos. Buckingham
e Burn (2007) fundamentam a escolha pelas dimensões cultural, crítica e
criativa na própria especificidade dos jogos. Sendo estes envolvidos em
práticas sociais, a dimensão cultural é evidente, incluindo as formas como as
pessoas lidam com os jogos, estabelecem grupos, relações e as forças políticas,
econômicas e sociais mais abrangentes relacionadas a essa cultura. A dimensão
crítica e reflexiva busca estimular um exercício de distanciamento e análise
crítica, mesmo que os jogos enquanto práticas sociais envolvam um forte
componente de imersão e muitas vezes de perda da consciência da passagem do
tempo, esse é mais um motivo para a reflexão crítica sobre essas práticas
(ALBUQUERQUE, 2014).
A dimensão criativa é apontada como parte integrante dos próprios jogos,
desde sua característica naturalmente interativa, incluindo a criação de
personagens em Role-Playing Games (RPGs), a produção cultural proveniente dos
grupos sociais envolvidos no jogar, como a criação de machinima (filmes feitos
a partir da manipulação de personagens em jogos digitais), fan fictions e
outros produtos culturais produzidos pelos jogadores, chegando à modificação ou
edição de níveis (modding) e à criação de jogos.
Com isso, Buckingham e Burn propõem a criação de jogos como “forma de
expressão cultural criativa específica e como meio para desenvolver a compreensão
crítica desse meio por parte dos estudantes” (2007, p. 330 tradução nossa).
Nesse processo, defendem a importância de considerar ainda, nas práticas de
criação de jogos, as experiências culturais que os alunos trazem, bem como as
formas de consciência crítica que eles já tenham e possam desenvolver ao longo
do processo (BUCKINGHAM; BURN, 2007), o que podemos aproximar também de uma
perspectiva freireana.
Um exercício bastante simples proposto na disciplina de Audiovisual na
EPSJV foi o de análise de jogos que os estudantes jogam. Inspirada na discussão
de “Values at Play” (FLANAGAN & NISSENBAUM, 2016), a professora propôs um
formulário com questões que tratavam de aspectos relativos ao sistema de regras
e aspectos visuais e narrativos, que geram imersão e fruição estética, das
interações dos jogadores com os jogos, bem como da inserção dos jogos na
sociedade, tratando das plataformas, formas de acesso e da constituição de
comunidades saudáveis ou nocivas de interação ao redor dos jogos. No debate, cada
estudante apresentou suas respostas, identificamos aproximações e
distanciamentos e discutimos, além do prazer envolvido nos jogos, suas
características discursivas, narrativas e formatos de interação, as diferentes
possibilidades de acesso material a eles, bem como seu estabelecimento enquanto
indústria, o que por vezes passa despercebido. Ao fazer um levantamento como
esse, os docentes podem se surpreender com a diversidade de jogos e com os
olhares críticos dos estudantes sobre essa linguagem tão presente em suas
vidas.
Além disso, na aula, os estudantes testaram e discutiram um jogo crítico
(“Não Seja Demitido!”), que, a partir de suas regras e mundo ficcional, com uma
linguagem irônica, comenta a precarização do mercado de trabalho no sistema
capitalista, que embora tenha como referência o mercado coreano, permite uma
identificação assustadora com a realidade de muitos outros países, como o
nosso, e poderia ser trabalhado em diferentes disciplinas. Pensando em outros
jogos digitais acessíveis pelo celular[9],
podemos navegar e explorar desde jogos tradicionais, como a Mancala, um jogo de
origem africana; até jogos cooperativos como Spaceteam, jogado de forma
simultânea entre os celulares na mesma rede; incluindo Roblox e Minecraft,
jogos que envolvem múltiplas possibilidades criativas por suas características
de “mundo aberto” e construção.
Produção audiovisual no contexto
remoto e presencial
A produção audiovisual, que vinha sendo "democratizada"
progressivamente, ao longo dos anos, com a diminuição e barateamento de
equipamentos como câmeras digitais e computadores pessoais com softwares de
edição não-linear, se torna ainda mais “acessível” a partir do celular, pela
incorporação de câmeras com cada vez mais qualidade e disponibilidade de
aplicativos gratuitos de edição.
Em contextos educativos, a produção audiovisual tem como característica
forte a coletividade. No contexto remoto, decorrente da pandemia de SARS Cov-2,
essa produção enfrentou novos desafios. Porém, se olharmos pela perspectiva do
desenvolvimento de sistemas para apoio ao trabalho em grupos, o celular pode
trazer muitas potências. Conforme descrito por Fuks et al, a colaboração
depende de uma composição de: cooperação (atuação conjunta no espaço
compartilhado), comunicação (troca de mensagens, argumentação e
negociação) e coordenação (o gerenciamento de pessoas, atividades e
recursos) (2011, p. 24). Nos celulares e tablets, aplicativos de anotações,
escrita coletiva, compartilhamento de arquivos e comunicação por meio de voz e
mensagens favorecem a comunicação e coordenação de grupos que podem colaborar,
mesmo remotamente, na criação audiovisual, bem como no contexto presencial.
Alguns recursos podem ser adicionados para possibilitar outras
explorações, como tripés, lentes, microfones específicos, diferentes recursos
de iluminação. O próprio youtube abriga diversas recomendações de como produzir
alguns destes recursos, como por exemplo tripés caseiros, além de recomendações
de como utilizar melhor os aparelhos celulares na captação de imagens e sons
(RECONHEÇA, s/d). Considerando as dificuldades de acesso à internet, as
atividades que envolvem produção e envio podem ser realizadas de forma
"offline" (escrita, fotografia, gravação) e os resultados podem ser
enviados de uma vez só, ao conectar à rede de dados móveis, ou a alguma rede
wi-fi.
Mais que tudo, a câmera presente no celular nos abre para explorar as
potências dos diferentes olhares, pontos de vista sobre o mundo, o recorte de
cada um ser visto, sua voz compartilhada. No contexto do distanciamento social
e ensino remoto, ter acesso a aparelhos móveis como o tablet ou celular permite
produzir e compartilhar olhares sobre o entorno mais próximo dos estudantes e,
inclusive, integrar as famílias nessas produções audiovisuais.
Como exemplo do uso de dispositivos móveis para produção audiovisual no
contexto remoto, trazemos o exercício "Seu Mestre Filmou", realizado
com celulares e tablets nas aulas de Audiovisual no ano de 2020. O exercício
consiste em, durante a aula via chamada de Zoom, solicitar que cada aluno ou
aluna produza determinados planos usando sua câmera do dispositivo móvel.
Inspirado na brincadeira “Seu Mestre Mandou”, a lista lida pela professora
indica que plano será feito (ex.: plano próximo, plano médio, plano geral) e o
que deve estar presente nele (ex.: sapatos, uma escada, um rosto de perfil,
algo que se move). O ângulo é de escolha dos alunos, e a experimentação nesse
sentido deve ser estimulada.
Em 2020, esse exercício foi feito com 3 turmas de 3º ano e 3 turmas de 2º
ano. No 3º ano, os estudantes que vêm desenvolvendo seu olhar crítico por meio
dos cineclubes, aulas, discussões e exercícios a respeito da linguagem
audiovisual, se agrupam para a produção de um curta-metragem, ao longo do ano
letivo (ALBUQUERQUE et al., 2017). Assim, nesse contexto, os objetivos eram
estimular a abertura das câmeras de forma descontraída, o que era um grande
desafio, e provocar o olhar para possibilidades de produção de imagens no
contexto de suas próprias casas, de forma a valorizar essa possibilidade,
diante da impossibilidade da proximidade física. No 2º ano, o exercício teve,
ainda, o objetivo de funcionar como disparador para a criação de ideias para as
cartas audiovisuais.
Com isso, as turmas exercitaram não apenas a produção de diferentes tipos
de enquadramento, mas o olhar sobre seu entorno, como potência de criação de
espaços e tempos fílmicos, com a câmera parada mas o corpo em movimento, na
busca de cada imagem. Após a aula, o vídeo com todas as imagens foi compartilhado
com cada turma. Uma alternativa pode ser solicitar a produção dos planos e o
envio prévio por meio de alguma forma de comunicação online, mas a interação
síncrona traz uma dinamicidade diferente à aula remota. O relato dos estudantes
foi de um exercício envolvente, que favoreceu movimentar o corpo e
"visitar" as casas dos colegas, conhecendo a diversidade e as
aproximações das rotinas de cada um. Além disso, alunos relataram um sentimento
de mais descontração em relação a abrir as câmeras durante as aulas online,
questão bastante desafiadora. Nesse exercício, toda imagem "vale",
não há julgamento de seu “conteúdo”, mas uma apreciação das possibilidades de
criação no ambiente doméstico de cada um. Em alguns dos vídeos produzidos pelos
grupos remotamente foi possível perceber, ainda, a apropriação de ideias de
planos realizados durante o exercício. No contexto presencial, o mesmo
exercício pode ser feito no espaço escolar, com a posterior exibição e
discussão coletiva dos planos construídos.
Conclusão
De forma geral, podemos dizer que, tanto as imagens compartilhadas nas
redes sociais quanto os jogos e as produções audiovisuais se constituem em
gêneros discursivos multimodais (LEMKE, 2010) que participam dos contextos de
sociabilidade dos estudantes, ao mesmo tempo imersos em uma sociedade
capitalista, e são acessados, consumidos, produzidos e compartilhados, em
grande parte, por meio dos aparelhos celulares, ou smartphones. Dessa forma,
buscamos discutir algumas abordagens possíveis para incorporar os aparelhos
móveis em contextos educativos, explorando alguns gêneros multimodais em
diferentes camadas, tendo como horizonte a possibilidade de uma Educação
Audiovisual crítica e criativa, como a desenvolvida na Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio. Nesse sentido, reforçamos que:
Pensar e ensinar audiovisual na sociedade
contemporânea é permitir ao aluno uma experiência e uma produção de
conhecimento que faz esses próprios alunos se reconhecerem dentro do universo
audiovisual, não só como consumidores e reprodutores, mas principalmente como
produtores de obras audiovisuais e de crítica. Uma forma de aguçar o espírito
artístico de cada um por meio das tecnologias, que estimulariam a esfera da
autonomia criativa e, com isso, participa do processo de formação humana de um
horizonte de criação e liberdade, permitindo aos jovens, a partir da crítica,
discussão e produção de imagens na escola, problematizar o existente e imaginar
novas formas de sociabilidade humana. (ALBUQUERQUE et al., 2017)
O celular é um recurso potente nesse processo, e precisa ser reconhecido
pelas instituições de ensino e educadores, bem como as condições para seu uso
precisam ser garantidas pelo poder público, especialmente para os estudantes
com menos acesso.
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com o mínimo de recursos. Cinco dicas que vão te ajudar muito nos seus
projetos audiovisuais. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1VesHSnnlGWr6VYs3W3btZCkgBC32cuAw/view
Acesso em 05 de fevereiro de 2022.
RECUERO, R. DA C. A Conversação
em Rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet.
Porto Alegre: Sulina, 2012.
VAN ZWIETEN, M. V. A. Video
Games Literacy: A Theoretical Framework. Tese (mestrado)—Utrecht,
Netherlands: Faculty of Humanities. Utrecht University, 2012.
ZAGAL, J. P. Ludoliteracy:
defining, understanding, and supporting games education. Pittsburgh, PA:
ETC Press, 2010.
ZAGALO, N. Alfabetización creativa en los videojuegos: comunicación
interactiva y alfabetización cinematográfica. Comunicar, v. 18, n. 35, p. 61–68, 1 out. 2010.
[1] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/10/06/presenca-de-milicia-dificulta-expansao-de-servicos-de-internet-no-rj.htm
[2]
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/09/tecnologia/1541771036_210342.html
[3]
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf
[4]
https://cetic.br/media/analises/tic_kids_online_brasil_2019_coletiva_imprensa.pdf
[5]
https://www.mobiletime.com.br/noticias/29/10/2021/aumenta-o-uso-de-smartphone-por-criancas-brasileiras-de-7-a-9-anos/
[6] Ver Oliveira (2019, p.214) para um compilado das
legislações brasileiras sobre o uso de celulares e outros equipamentos em
contextos de ensino Fundamental, Médio e Superior, e para uma discussão
aprofundada dos celulares como dispositivos para “como ver, co-mover e
comover”, bem como ideias para sua apropriação em diferentes disciplinas, além
das Artes e do Audiovisual.
[7] Ver a tese de doutorado de Albuquerque (2021) para
uma discussão aprofundada sobre a Educação Audiovisual e a disciplina de
Audiovisual na EPSJV.
[8]
https://educacao-audiovisual.blogspot.com/p/exercicio-album-de-si.html
[9] Ver https://www.gamesforchange.org/games/?q=&pl=13,14 para mais jogos para dispositivos móveis com
temáticas sociais contemporâneas.
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