última atualização 09-01-2023

Dicionário da Educação Audiovisual - Currículo

 

Carlos Eduardo C. Batistella
Doutor em Educação (UERJ, 2020)
Professor e pesquisador da EPSJV
Membro do grupo de pesquisa sobre
 Políticas Curriculares (ProPEd/UERJ)



1.      Currículo e educação

Ainda que tenha se convencionado uma “origem” para o campo do currículo no início do século XX, nos Estados Unidos, quando são desenvolvidos os primeiros estudos e publicações específicas sobre o tema, o currículo existe desde que se realiza a primeira ação educativa.

Havia currículo no ensino das tradições culturais e religiosas, na aprendizagem dos ofícios, na vida social em geral. Etimologicamente, o termo “currículo” provém da palavra latina scurrere, que significa correr, referindo-se assim ao curso ou carro de corrida, carreira, caminho, jornada, trajetória, percurso a seguir (Goodson, 1995).

A busca (incerta) de um conceito acompanha a própria dinâmica do tratamento dos problemas curriculares, conduzindo ao dilatamento de seus significados. Para Sacristán (2000) o currículo pode ser objetivado de diferentes formas: como currículo prescrito (regulações a que todo sistema educativo está submetido, levando em conta sua significação social); como currículo apresentado aos professores (instâncias que traduzem para os professores o significado e os conteúdos do currículo prescrito. Ex: livros-texto); como currículo modelado pelos professores (ação direta da cultura profissional do professor – plano da disciplina, planos de aula); como currículo em ação ou currículo vivido (prática real e interativa do cotidiano escolar); como currículo realizado (efeitos complexos de diferentes tipos – cognitivo, afetivo, social, moral) e ainda, como currículo avaliado (pressões externas e imposição de critérios para o ensino).

No senso comum – e mesmo no campo da educação - nos acostumamos a pensar o currículo como uma seleção de conteúdos ou conhecimentos que se considera fundamentais para serem ensinados. Essa visão tradicional e bastante disseminada acaba por deixar de lado ou secundarizar várias questões que os próprios estudos curriculares ajudaram a tematizar. Auxiliado por diferentes autoras(es) do campo, assumo que não é possível responder à pergunta “o que é currículo”, por entender que essa significação é sempre contextual e histórica.

Assim, na gênese do campo, o currículo é tomado por Bobbit e o eficientismo como uma ferramenta capaz de planejar cientificamente a educação para atender às exigências da ordem econômica. Inspirado nos conceitos da administração científica do taylorismo/fordismo, o currículo se converte em um instrumento de preparação do aluno para a vida economicamente ativa. Como metáfora das fábricas, a escola deve definir com clareza os objetivos/especificações de modo a que os processos e atividades sejam pensados de modo a controlar e garantir a obtenção dos “produtos” esperados.

Em caminho diverso, o progressivismo de Dewey valoriza a experiência direta dos alunos como forma de reduzir o hiato entre a escola e o interesse dos alunos (Lopes e Macedo, 2011). Introduzindo as noções de atividade e integração, o currículo e o ambiente escolar devem se organizar para a tematização e resolução de problemas sociais.

Visto em uma perspectiva tecnicista, o currículo de Ralph Tyler assevera que objetivos educacionais devem ser claramente definidos em termos de comportamentos explícitos e observáveis, e que todo o processo de identificação, organização e avaliação de experiências pedagógicas consiste em assegurar o seu alcance.

A suposta neutralidade do conhecimento e a ênfase na dimensão de controle social da escola nestas abordagens são denunciadas pelas chamadas teorias da correspondência ou da reprodução, produzidas no âmbito do pensamento crítico dos anos 1970. Os trabalhos de Althusser, Baudelot e Establet, Bowles e Gintis, Bourdieu e Passeron, entre outros, destacam o papel da escola (e do currículo) na reprodução da ideologia e dos papéis sociais da sociedade capitalista.

Esse importante aporte da filosofia e sociologia permitiu uma reconceitualização do campo do currículo. Apoiados na tradição crítica de base marxista, diversos estudos buscam formas de superar o imobilismo teorias reprodutivistas, assumindo uma perspectiva radical da escolarização: o currículo é pensado então como espaço de resistência, de luta contra-hegemônica e emancipação.

As críticas às abordagens técnicas do currículo também são dirigidas ao seu caráter prescrito, pré-estabelecido em um lugar externo e alheio à escola e seus agentes. Nos estudos de base fenomenológica, o currículo passa a ser definido para além dos saberes regulados socialmente a serem dominados pelos estudantes, passando a englobar também as práticas cotidianas da escola, a interação entre os saberes, vivências e trajetórias de professores e alunos.

Procurando ir além da separação entre elaboração e implementação de currículos e das distinções do currículo formal, oculto ou vivido, os aportes pós-estruturais evitam os essencialismos e nos ajudam a pensar o currículo como produção cultural, como espaço-tempo de fronteiras, de produção de sentidos e de luta pela significação.

 

2.      Currículo e educação audiovisual

No campo da educação audiovisual, para além da dimensão mais geral de organização - prévia ou não - de experiências e situações de aprendizagem, o debate curricular reaparece a partir do questionamento do próprio lugar da educação audiovisual: compondo ou não o currículo da escolarização.

Considerado um dos precursores do tema, Alain Bergala (2008) defende a não incorporação da educação audiovisual ao currículo escolar. Seguindo a hipótese sobre a arte na escola como encontro com a alteridade, o autor afirma que a redução da educação ao ensino amputaria uma dimensão essencial da arte, o seu desregramento, sua abertura ao acontecimento, ao radicalmente outro. O enclausuramento disciplinar seria incompatível com o alcance simbólico da arte, forçaria uma pedagogia da interpretação, burocratizaria seu gesto criativo. Admitindo, no entanto, que a escola seja, para muitas crianças e adolescentes, “o único lugar onde esse encontro possa se dar”, Bergala sugere que seu desenvolvimento se dê como atividade de outra natureza, longe da obrigatoriedade e do didatismo. Compartilhando esse ponto de vista, diversas experiências brasileiras de educação audiovisual surgiram como atividade extra-curriculares.

Chamo a atenção, no entanto, que a ideia do extra-curricular apresentada tradicionalmente como “aquilo que não está inserido na grade curricular” (Garcia, 2011) se assenta em uma visão formalista do currículo, cuja única diferença em relação às demais disciplinas parece ser o seu caráter eletivo. Para Fresquet (2013, p.),

Não se trata de discutir se o cinema tem que entrar no horário turno ou como atividade a contra-turno, mas de propor afirmativamente um espaço para o cinema que cada escola com sua comunidade de professores, estudantes, funcionários e pais poderá decidir melhor, segundo as circunstâncias. Em países nos quais não existem as assimetrias sócio-políticas económicas e culturais como as que sofremos em latino-américa eu teria a coragem de afirmar com convicção a presença do cinema na escola em contra-turno. Porém, onde o cinema ainda constitui privilégio de classes favorecidas social e culturalmente, ainda acredito que a potência pedagógica do cinema se expande para uma dimensão ética e política.

Promover o encontro do cinema com a escola envolve, sobretudo, uma percepção do papel do professor distinta daquela enfatizada pelas reformas educacionais das últimas décadas. Na normatividade neoliberal (Dardot & Laval, 2015) as escolas são reconfiguradas sob a égide da cultura do desempenho, voltando-se ao gerenciamento de resultados, e os docentes, à performatividade dos novos modos de regulação e controle (Ball, 2010). Com o “crescente abandono ou marginalização (não no que se refere à retórica) dos propósitos sociais da educação” (Ball, 2001), os professores passam a figurar como “implementadores” de currículos prescritos e centralizados, baseados em conteúdos pragmáticos voltados à eficiência do mercado. Sob o regime da accountability, promove-se a tentativa de fixação dos sentidos do que se entende por educação básica (Macedo, 2012) e a diminuição dos espaços de autonomia de escolas e docentes na definição curricular.

A redução da educação ao ensino não é, no entanto, um efeito exclusivo das políticas neoliberais, e está profundamente enraizada em nossa tradição curricular. Ao tomar o conhecimento como categoria central, a escola tende a tratá-lo como coisa, como algo a ser selecionado e não como prática de significação (Macedo, 2012).

A proposta de educação audiovisual nas escolas se coloca na contramão desta perspectiva: buscando redefinir o currículo de modo a “torná-lo capaz de lidar com a diferença” (Macedo, 2012, p.728), concebe o cinema como alteridade (Bergala, 2008) e o seu encontro com a escola como uma possibilidade de emancipação (Migliorin, 2014):

Emancipar não é tarefa de um mestre que indica o caminho àqueles que não têm luz. Sem essa divisão, a situação de criação no ambiente educacional demanda do mestre e das propostas colocadas em prática, um gesto de abertura ao que pertence aos alunos e à multiplicidade de mundos trazidos por eles (Migliorin, 2014, p.02).

Assim, a formação pedagógica para a educação audiovisual não envolve exatamente o domínio e a transmissão de conteúdos específicos, mas o entendimento do currículo como “espaço-tempo de fronteira cultural” e de produção de sentidos.

Embora a produção de imagens no mundo esteja se tornando algo absolutamente corriqueiro, não é tão abrangente a prática da reflexão e interpretação imagética fora de seus circuitos específicos. Se a interpretação textual é item obrigatório do currículo escolar, o estudo sistemático da imagem ainda não alcançou tal projeção. (...) A superação do modelo convencional de utilização do cinema na escola - mero instrumento ou recurso pedagógico restrito à ilustração de conteúdos pelo professor na sala de aula - passa pelo desenvolvimento de propostas de educação audiovisual que o valorizem como objeto da cultura, propiciando momentos de apreciação, de crítica e reflexão (Dias, Albuquerque & Batistella, 2016, p.309)

O desafiante encontro com a alteridade implica a descolonização do currículo, a recusa na tendência do professor de endereçar a interpretação, de propor a leitura “correta” aos alunos. Como espaço aberto às múltiplas possibilidades de significação, o currículo da educação audiovisual é antes de tudo lugar de estranhamento do olhar, de produção de analogias, metáforas, entrecruzamentos e confrontos, e onde gosto, racionalidade, afetos e histórias de vida são mobilizados numa deriva que pressupõe a valorização das diferenças e não a busca didatizada de uma suposta “versão definitiva” para servir à homogeneidade.   

Ainda que as experiências de educação audiovisual recorram com certa frequência a determinados conteúdos, exercícios e atividades, como a discussão sobre o estatuto da imagem, a história e linguagem do cinema, seus elementos de significação, exercícios fotográficos e de iniciação ao universo cinematográfico, como o minuto Lumiére, as cartas audiovisuais, as oficinas de criação e produção, os cineclubes etc – não acredito que se deva buscar em fundamentos ou bases uma estabilização do currículo. Assumindo uma perspectiva pós-estrutural, defendo a impossibilidade de universalizar formas de decidir o deve ser do currículo da educação audiovisual.  Para Lopes (2015, p.141)

“se o currículo encontra sua completude, sua definição, se vê encarnado por uma única posição de conteúdo, conhecimento, plano, proposta, cessa a disputa por essa encarnação, a política para construir tal significação torna-se restrita a um momento anterior à definição curricular e todos os processos, posteriores a essa definição, são construídos para tentar garantir a leitura correta da definição pré-estabelecida. O currículo sucumbe à categoria de coisa a ser reproduzida nas salas de aulas”

Assim, os conceitos, dispositivos e experiências propostas para a educação audiovisual são múltiplos e diversos, vividos como espaços de significação do mundo em que vivemos. A tentativa de fixar o sentido da e na educação audiovisual funciona como antítese daquilo que parece ser a sua grande contribuição para o campo da educação, o compromisso e a responsabilidade com o outro que ainda está por vir.

 

Referências:

BALL, Stephen J. BALL, Stephen. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem fronteiras, v.1, n.2, 2001. p.99-116.

__________. Performatividades e Fabricações na Economia Educacional: rumo a uma sociedade performativa. Educação & Realidade. 35(2): 37-55 maio/ago.2010.

BERGALA, Alain. A Hipótese Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008.

DARDOT, P.; LAVAL, C. Uma alternativa ao neoliberalismo: Entrevista a Daniel Pereira Andrade e Nilton Ken Ota. Tempo social, São Paulo,  v. 27, n. 1, p. 275-316,  jun.  2015.

DIAS, Cynthia Macedo; ALBUQUERQUE, Gregório Galvão de & BATISTELLA, Carlos Eduardo Colpo. Educação audiovisual como crítica da imagem: o cinema na escola e a formação de olhares autônomos. In: Barbosa, Maria Carmem Silveira & Santos, Maria Angélica dos (orgs.). Cinema e Educação: dentro e fora da lei. Anais do II Seminário Internacional de Cinema e Educação, 17 e 18 de outubro de 2014, Porto Alegre: UFRGS/Programa de Alfabetização Audiovisual, 2014. 342p.: il.

FRESQUET, Adriana Mabel. Formação de professores e atividades na escola: algumas ideias. In: FRESQUET, Adriana Mabel (Org.). Currículo de Cinema para Escolas de Educação Básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013.

GARCIA, Janaína P. Breve relato das experiências da Escola de Cinema do CAp/UFRJ. Revista Educação Pública, Fundação Cecierj, V.11, n. 32, 2011. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/edicoes/11/32

GOODSON, Ivor. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 1995.

LOPES, Alice Casimiro e MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

LOPES, Alice Casimiro. Normatividade e intervenção política: em defesa de um investimento radical. In: Lopes, Alice Casimiro e Mendonça, Daniel de (Orgs.). A Teoria do Discurso de Ernesto Laclau. São Paulo: Annablume, 2015.

MACEDO, Elizabeth. Currículo e conhecimento. Aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, v.42, n.147, set/dez 2012 p.716-737.

MIGLIORIN, Cesar. O ensino de cinema e a experiência do filme-carta. Revista da Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação / E-compós. Brasília, v.17, n.1, jan/abr 2014.

SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.


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