1.
Currículo e educação
Ainda que tenha se convencionado uma “origem” para o campo do currículo
no início do século XX, nos Estados Unidos, quando são desenvolvidos os primeiros
estudos e publicações específicas sobre o tema, o currículo existe desde que se
realiza a primeira ação educativa.
Havia currículo no ensino das tradições culturais e religiosas, na
aprendizagem dos ofícios, na vida social em geral. Etimologicamente, o termo “currículo”
provém da palavra latina scurrere, que significa correr,
referindo-se assim ao curso ou carro de corrida, carreira, caminho, jornada,
trajetória, percurso a seguir (Goodson, 1995).
A busca (incerta) de um conceito acompanha a própria dinâmica do tratamento
dos problemas curriculares, conduzindo ao dilatamento de seus significados. Para
Sacristán (2000) o currículo pode ser objetivado de diferentes formas: como
currículo prescrito (regulações a que todo sistema educativo está submetido,
levando em conta sua significação social); como currículo apresentado aos
professores (instâncias que traduzem para os professores o significado e os
conteúdos do currículo prescrito. Ex: livros-texto); como currículo modelado
pelos professores (ação direta da cultura profissional do professor – plano da
disciplina, planos de aula); como currículo em ação ou currículo vivido
(prática real e interativa do cotidiano escolar); como currículo realizado
(efeitos complexos de diferentes tipos – cognitivo, afetivo, social, moral) e
ainda, como currículo avaliado (pressões externas e imposição de critérios para
o ensino).
No senso comum – e mesmo no campo da educação - nos acostumamos a pensar
o currículo como uma seleção de conteúdos ou conhecimentos que se considera
fundamentais para serem ensinados. Essa visão tradicional e bastante
disseminada acaba por deixar de lado ou secundarizar várias questões que os
próprios estudos curriculares ajudaram a tematizar. Auxiliado por diferentes
autoras(es) do campo, assumo que não é possível responder à pergunta “o que é
currículo”, por entender que essa significação é sempre contextual e histórica.
Assim, na gênese do campo, o currículo é tomado por Bobbit e o
eficientismo como uma ferramenta capaz de planejar cientificamente a educação para
atender às exigências da ordem econômica. Inspirado nos conceitos da
administração científica do taylorismo/fordismo, o currículo se converte em um instrumento
de preparação do aluno para a vida economicamente ativa. Como metáfora das
fábricas, a escola deve definir com clareza os objetivos/especificações de modo
a que os processos e atividades sejam pensados de modo a controlar e garantir a
obtenção dos “produtos” esperados.
Em caminho diverso, o progressivismo de Dewey valoriza a experiência
direta dos alunos como forma de reduzir o hiato entre a escola e o interesse
dos alunos (Lopes e Macedo, 2011). Introduzindo as noções de atividade e
integração, o currículo e o ambiente escolar devem se organizar para a
tematização e resolução de problemas sociais.
Visto em uma perspectiva tecnicista, o currículo de Ralph Tyler assevera
que objetivos educacionais devem ser claramente definidos em termos de comportamentos
explícitos e observáveis, e que todo o processo de identificação, organização e
avaliação de experiências pedagógicas consiste em assegurar o seu alcance.
A suposta neutralidade do conhecimento e a ênfase na dimensão de controle
social da escola nestas abordagens são denunciadas pelas chamadas teorias da
correspondência ou da reprodução, produzidas no âmbito do pensamento crítico
dos anos 1970. Os trabalhos de Althusser, Baudelot e Establet, Bowles e Gintis,
Bourdieu e Passeron, entre outros, destacam o papel da escola (e do currículo)
na reprodução da ideologia e dos papéis sociais da sociedade capitalista.
Esse importante aporte da filosofia e sociologia permitiu uma
reconceitualização do campo do currículo. Apoiados na tradição crítica de base
marxista, diversos estudos buscam formas de superar o imobilismo teorias
reprodutivistas, assumindo uma perspectiva radical da escolarização: o
currículo é pensado então como espaço de resistência, de luta contra-hegemônica
e emancipação.
As críticas às abordagens técnicas do currículo também são dirigidas ao
seu caráter prescrito, pré-estabelecido em um lugar externo e alheio à escola e
seus agentes. Nos estudos de base fenomenológica, o currículo passa a ser
definido para além dos saberes regulados socialmente a serem dominados pelos
estudantes, passando a englobar também as práticas cotidianas da escola, a
interação entre os saberes, vivências e trajetórias de professores e alunos.
Procurando ir além da separação entre elaboração e implementação de
currículos e das distinções do currículo formal, oculto ou vivido, os aportes
pós-estruturais evitam os essencialismos e nos ajudam a pensar o currículo como
produção cultural, como espaço-tempo de fronteiras, de produção de sentidos e
de luta pela significação.
2.
Currículo e educação audiovisual
No campo da educação audiovisual, para além da dimensão mais geral de
organização - prévia ou não - de experiências e situações de aprendizagem, o
debate curricular reaparece a partir do questionamento do próprio lugar da
educação audiovisual: compondo ou não o currículo da escolarização.
Considerado um dos precursores do tema, Alain Bergala (2008) defende a
não incorporação da educação audiovisual ao currículo escolar. Seguindo a
hipótese sobre a arte na escola como encontro com a alteridade, o autor afirma
que a redução da educação ao ensino amputaria uma dimensão essencial da arte, o
seu desregramento, sua abertura ao acontecimento, ao radicalmente outro. O
enclausuramento disciplinar seria incompatível com o alcance simbólico da arte,
forçaria uma pedagogia da interpretação, burocratizaria seu gesto criativo. Admitindo,
no entanto, que a escola seja, para muitas crianças e adolescentes, “o único
lugar onde esse encontro possa se dar”, Bergala sugere que seu desenvolvimento
se dê como atividade de outra natureza, longe da obrigatoriedade e do
didatismo. Compartilhando esse ponto de vista, diversas experiências
brasileiras de educação audiovisual surgiram como atividade extra-curriculares.
Chamo a atenção, no entanto, que a ideia do extra-curricular apresentada tradicionalmente
como “aquilo que não está inserido na grade curricular” (Garcia, 2011) se
assenta em uma visão formalista do currículo, cuja única diferença em relação
às demais disciplinas parece ser o seu caráter eletivo. Para Fresquet (2013,
p.),
Não se trata de
discutir se o cinema tem que entrar no horário turno ou como atividade a
contra-turno, mas de propor afirmativamente um espaço para o cinema que cada
escola com sua comunidade de professores, estudantes, funcionários e pais
poderá decidir melhor, segundo as circunstâncias. Em países nos quais não
existem as assimetrias sócio-políticas económicas e culturais como as que
sofremos em latino-américa eu teria a coragem de afirmar com convicção a
presença do cinema na escola em contra-turno. Porém, onde o cinema ainda
constitui privilégio de classes favorecidas social e culturalmente, ainda
acredito que a potência pedagógica do cinema se expande para uma dimensão ética
e política.
Promover o encontro do cinema com a escola envolve, sobretudo, uma
percepção do papel do professor distinta daquela enfatizada pelas reformas
educacionais das últimas décadas. Na normatividade neoliberal (Dardot &
Laval, 2015) as escolas são reconfiguradas sob a égide da cultura do
desempenho, voltando-se ao gerenciamento de resultados, e os docentes, à
performatividade dos novos modos de regulação e controle (Ball, 2010). Com o
“crescente abandono ou marginalização (não no que se refere à retórica) dos
propósitos sociais da educação” (Ball, 2001), os professores passam a figurar
como “implementadores” de currículos prescritos e centralizados, baseados em
conteúdos pragmáticos voltados à eficiência do mercado. Sob o regime da accountability, promove-se a tentativa
de fixação dos sentidos do que se entende por educação básica (Macedo, 2012) e
a diminuição dos espaços de autonomia de escolas e docentes na definição
curricular.
A redução da educação ao ensino não é, no entanto, um efeito exclusivo
das políticas neoliberais, e está profundamente enraizada em nossa tradição
curricular. Ao tomar o conhecimento como categoria central, a escola tende a
tratá-lo como coisa, como algo a ser selecionado e não como prática de significação
(Macedo, 2012).
A proposta de educação audiovisual nas escolas se coloca na contramão
desta perspectiva: buscando redefinir o currículo de modo a “torná-lo capaz de
lidar com a diferença” (Macedo, 2012, p.728), concebe o cinema como alteridade
(Bergala, 2008) e o seu encontro com a escola como uma possibilidade de
emancipação (Migliorin, 2014):
Emancipar não é tarefa
de um mestre que indica o caminho àqueles que não têm luz. Sem essa divisão, a
situação de criação no ambiente educacional demanda do mestre e das propostas
colocadas em prática, um gesto de abertura ao que pertence aos alunos e à
multiplicidade de mundos trazidos por eles (Migliorin, 2014, p.02).
Assim, a formação pedagógica para a educação audiovisual não envolve
exatamente o domínio e a transmissão de conteúdos específicos, mas o
entendimento do currículo como “espaço-tempo de fronteira cultural” e de
produção de sentidos.
Embora a produção de
imagens no mundo esteja se tornando algo absolutamente corriqueiro, não é tão
abrangente a prática da reflexão e interpretação imagética fora de seus
circuitos específicos. Se a interpretação textual é item obrigatório do
currículo escolar, o estudo sistemático da imagem ainda não alcançou tal
projeção. (...) A superação do modelo convencional de utilização do cinema na
escola - mero instrumento ou recurso pedagógico restrito à ilustração de
conteúdos pelo professor na sala de aula - passa pelo desenvolvimento de
propostas de educação audiovisual que o valorizem como objeto da cultura,
propiciando momentos de apreciação, de crítica e reflexão (Dias, Albuquerque
& Batistella, 2016, p.309)
O desafiante encontro com a alteridade implica a descolonização do
currículo, a recusa na tendência do professor de endereçar a interpretação, de
propor a leitura “correta” aos alunos. Como espaço aberto às múltiplas
possibilidades de significação, o currículo da educação audiovisual é antes de
tudo lugar de estranhamento do olhar, de produção de analogias, metáforas,
entrecruzamentos e confrontos, e onde gosto, racionalidade, afetos e histórias
de vida são mobilizados numa deriva que pressupõe a valorização das diferenças
e não a busca didatizada de uma suposta “versão definitiva” para servir à
homogeneidade.
Ainda que as experiências de educação audiovisual recorram com certa
frequência a determinados conteúdos, exercícios e atividades, como a discussão
sobre o estatuto da imagem, a história e linguagem do cinema, seus elementos de
significação, exercícios fotográficos e de iniciação ao universo
cinematográfico, como o minuto Lumiére, as cartas audiovisuais, as oficinas de
criação e produção, os cineclubes etc – não acredito que se deva buscar em fundamentos
ou bases uma estabilização do currículo. Assumindo uma perspectiva pós-estrutural,
defendo a impossibilidade de universalizar formas de decidir o deve ser do
currículo da educação audiovisual. Para
Lopes (2015, p.141)
“se o currículo
encontra sua completude, sua definição, se vê encarnado por uma única posição
de conteúdo, conhecimento, plano, proposta, cessa a disputa por essa
encarnação, a política para construir tal significação torna-se restrita a um
momento anterior à definição curricular e todos os processos, posteriores a
essa definição, são construídos para tentar garantir a leitura correta da
definição pré-estabelecida. O currículo sucumbe à categoria de coisa a ser
reproduzida nas salas de aulas”
Assim, os conceitos, dispositivos e experiências propostas para a educação
audiovisual são múltiplos e diversos, vividos como espaços de significação do
mundo em que vivemos. A tentativa de fixar o sentido da e na educação
audiovisual funciona como antítese daquilo que parece ser a sua grande
contribuição para o campo da educação, o compromisso e a responsabilidade com o
outro que ainda está por vir.
Referências:
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Currículo sem fronteiras, v.1, n.2, 2001. p.99-116.
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BERGALA, Alain. A
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escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008.
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17 e 18 de outubro de 2014, Porto Alegre: UFRGS/Programa de Alfabetização
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Lopes, Alice Casimiro e Mendonça, Daniel de (Orgs.). A Teoria do Discurso de
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