Andréa FrançaProfessora associada no departamento de Comunicação da PUC-Rio e coordenadora do núcleo de Cinema e Audiovisual do departamento. É pesquisadora do CNPq com doutorado em Comunicação pela ECO-UFRJ. Autora de livros e artigos sobre cinema, arquivo e documentário. Curadora e diretora dos ensaios audiovisuais da Galeria Rio Cinético dentro do site Rio Memórias.Nicholas Andueza
é doutorando em Comunicação pela ECO-UFRJ com bolsa CNPq. Ministrou disciplina sobre audiovisual na graduação da ECO-UFRJ em 2019, sob orientação de Consuelo Lins. Autor de artigos sobre cinema. Crítico de arte e professor de cursos de curta duração para a revista DASartes. Editor audiovisual e câmera.
Passeio público na sala de aula: sobre uma dinâmica pedagógica
Nada aprendemos com aquele que nos diz: ‘faça como eu’. Nossos mestres são aqueles que nos dizem ‘faça comigo’ e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo. (Gilles Deleuze).
Este
verbete é resultado do 1º Seminário
Audiovisual e Educação: Metodologias na Construção do Conhecimento,
realizado em agosto de 2018, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.
Ele só se tornou possível mediante as trocas e debates propiciadas pelo
Seminário e mediante os cuidados atentos dos organizadores desta publicação.
Agradecemos a todos e todas que colaboraram com sugestões e questões, sobretudo
do campo da educação, para que este artigo pudesse ser repensado à luz desses
comentários.
Descrevemos
uma experiência pedagógica realizada no ano de 2015 na matéria de Teoria e Crítica do Cinema. A proposta
era se distanciar da lógica instituída onde uma disciplina de teoria apresenta
abordagens, conceitos, contextos históricos e ainda teóricos que repensaram a
prática e o fazer fílmico. Ao propormos aos discentes que realizassem
experimentos audiovisuais a partir de suas vivências e das aulas do curso,
explicitando que também faríamos o nosso experimento (professora e monitor), a
ideia era trazer a(s) teoria(s) em função das propostas apresentadas, ou seja,
em diálogo com elas e a partir delas. Denominamos os filmes que seriam feitos
de “experimentos audiovisuais” porque nos interessava enfatizar a dimensão
inventiva e aberta ao risco do fazer cinematográfico, isto é, sua parte de
enigma anterior ao sentido.
Assim,
a teoria e os teóricos do cinema seriam convocados a partir da necessidade de
cada projeto discente; ao invés de listarmos conceitos importantes de modo
abstrato e maquínico ao longo das aulas, os filmes e suas teorias seriam
chamados concretamente para auxiliar na invenção de novas ideias, desejos e
olhares. Ao decidirmos, professora e monitor, que também participaríamos de tal
experiência (para realizar um filme), estávamos abertos aos erros e acertos de
tal proposta. Queríamos deslocar e repensar lugares cristalizados, tais como:
da teoria (como exposição lógica de um conceito), do cinema na sala de aula
(como recurso metodológico para transmitir conteúdo e aprendizado), do docente
(como aquele que transmite saber e conhecimento) e do discente (como aquele que
recebe conhecimento e reproduz aquilo que aprendeu).
***
No primeiro semestre de 2015, depois de uma conversa com os alunos
na cadeira de Teoria e Crítica de Cinema na graduação em Comunicação Social da
PUC- Rio, surge a ideia de propor à turma experimentos audiovisuais de no
máximo cinco minutos inspirados em um dos conceitos teóricos do curso. Em vez
de trabalhos escritos ou provas como avaliação final, a proposta implicaria em
conectar teoria e prática e considerar mais o processo de feitura do que o
resultado – valorizando as discussões em sala de aula, o material trazido para
análise por cada grupo e os argumentos elaborados nas conversas com os alunos e
entre eles. Durante esses encontros, estabelecemos – monitor e professora – que
também realizaríamos secretamente nosso experimento e que partiríamos das imagens
que restaram do filme A cidade do Rio de
Janeiro (1924, de Alberto Botelho).
A proposta deste capítulo é analisar a metodologia que utilizamos
e seus resultados, de modo a fazer deste texto a partilha de uma experiência.
Primeiramente, descrevemos as estratégias pedagógicas que embasaram nossa
atividade prático-reflexiva em sala; em seguida, apresentamos momentos
históricos fecundos no cinema em que teoria e prática deixam de se opor de modo
maniqueísta. Por fim, visitamos a realização do curta Passeio público, passando pelos desafios teórico-estéticos e pelos
desdobramentos de sua feitura em sala de aula (e para além dela).
Nosso experimento audiovisual nasce de um questionamento sobre as
fronteiras que definem teoria e prática cinematográficas na dinâmica
pedagógica. O debate sobre o tema é amplo e não pretendemos esgotá-lo aqui. Em
linhas gerais, o que distingue o termo “teoria” de outras formas de pensamento
é, em meio a outros pontos, seu caráter especulativo, coerente e sua força
explicativa. A teoria não está ligada necessariamente à ação, ao fazer, mas a
uma abstração, a um esquema, a um modelo (AUMONT, 2008). Assim,
ao estabelecermos que o trabalho final se
daria em pequenos filmes inspirados em conceitos
teóricos, buscávamos uma aproximação
entre a produção de filmes e a produção de pensamento crítico, especulativo. É
claro que tal empreitada tinha seus limites, visto que um filme não se esgota
em sua força explicativa ou na sua coerência de ideias, mas queríamos ao menos
friccionar tal separação e discuti-la vivamente.
Nosso curta nasce igualmente
do desejo de propiciar uma forma de ensino mais
pautada na horizontalidade do que nas hierarquias: mesmo que fôssemos
professora e monitor, também participaríamos da atividade proposta. Estaríamos
ali, junto com os alunos, assegurando que tivessem suas vivências e ideias
expostas. Nós estaríamos junto a eles, nos arriscando também, lado a lado.
Por uma teoria e uma prática crítico-criativas
A questão que ficou clara desde o início do curso era a necessidade
de valorizar mais o processo de confecção dos filmes feitos pelos alunos do que
o resultado final. Primeiro por uma questão de princípio: pretendíamos criar um
ambiente aberto a experimentações, de modo que o acompanhamento minucioso do
processo ajudava e encorajava os alunos a se arriscarem para além do que lhes
era familiar. Segundo, por uma questão pragmática: a avaliação de uma produção
artística sempre esbarra em questões subjetivas, de modo que uma estrutura
centralizada nesse tipo de avaliação traria problemas práticos e éticos com
relação às notas finais. Com a valorização não só da linha de chegada, mas
também do processo, instaurou-se um ambiente convidativo à experimentação. A
ideia, desde o início, era favorecer “gestos criativos”, chamando os alunos a
participarem na confecção de problemas – isto é, na “produção de dúvidas” – e
na tomada de posição perante os problemas surgidos.
Para dar chão a esse ambiente experimental, transformamos a sala
em um espaço para a reunião dos grupos. Assim, durante as duas horas de aula,
chamávamos cada grupo, de dois ou três integrantes, à nossa mesa para expor o
andamento do projeto. A recepção aos experimentos era de praxe calorosa e esse
gesto acolhedor favoreceu o diálogo e as críticas a pontos frágeis ou fortes
das propostas.
Queríamos nos aproximar dos alunos enquanto “intercessores” e não
simplesmente como “avaliadores”. No sentido proposto por Gilles Deleuze (1988),
intercessores seriam modos de aliança e de encontro que favorecem ao pensamento
sair de sua ociosidade natural. São encontros contingentes, imprevisíveis, seja
com pessoas, coisas ou eventos, que coagem o pensamento a nascer do fortuito
(DELEUZE, 1988). Assim, buscamos fazer da sala de aula um lugar não de
uniformização e intimidação, mas de encontros que geram problemas, questões,
germens de soluções e novas criações. A sala de aula transformou-se num
laboratório coletivo da teoria
cinematográfica deslocada e remanejada em pequenos filmes.
Para fazermos valer o princípio de que conceitos teóricos poderiam
ser “atos de criação”, estabelecemos a seguinte estrutura: primeiro, os alunos
teriam que escolher um dos conceitos apresentados durante o curso: fotogenia (Jean Epstein), cine-olho (Dziga Vertov), cine-punho (Sergei Eisenstein), collage (Luis Buñuel), Imagem-fato (André Bazin), Imagem-tempo (Gilles Deleuze), dispositivo (Cinema de dispositivo), Cinema expandido (Gene Youngblood). Depois, os
grupos teriam que nos entregar um relatório de duas laudas que a) apontasse e
justificasse o conceito escolhido, b) descrevesse a proposta de filme,
articulando-a com o conceito, e c) citasse referências audiovisuais que
executassem algo similar ao pretendido. Tais referências funcionavam como o elo
entre a teoria argumentada e a prática vislumbrada.
Após a entrega do primeiro relatório, que marca a primeira fase do
processo, os grupos começavam as filmagens e edições. Então sugeríamos que os grupos
exibissem o andamento dos projetos para todos discutirem formas de
encaminhamento. E os alunos, claro, não eram forçados a seguir nossas
sugestões. Pelo contrário, houve casos em que argumentamos por um lado e o
grupo devolveu uma resposta bem embasada por outro. Que alegria quando víamos
que os alunos iam além dos textos e dos filmes dados em sala, apropriando-se do
conceito de modo inesperado e original!
Foi nesse espírito coletivo que se deu a entrega final do
trabalho, dividido em duas partes: a primeira, o experimento audiovisual; a
segunda, um relatório sobre os processos de realização. O relatório final
deveria descrever o processo de feitura, entendendo-o como algo dinâmico e
mesmo imprevisível. Enquanto tal relatório era entregue somente a nós – professora e
monitor –, os filmes eram exibidos e debatidos pela turma toda. Separamos as
duas aulas finais para ver e debater cada um dos trabalhos. A nota final, da
qual quase metade era referente aos relatórios, levava em conta essas
discussões em sala, observando as participações nos debates.
Ao contrário da lógica pedagógica da reprodução, onde o aluno deve
aprender aquilo que o professor o ensina em sala, deve ver aquilo que o professor lhe faz ver e onde o familiar e o estabelecido não são postos em risco,
implementamos a lógica da emancipação, onde o professor “ignorante” e o
estudante emancipado encontram uma
terceira coisa – a cena de um filme, o fragmento de um livro, uma
fotografia, um poema – que pode ser estranha tanto a um como a outro, mas à
qual eles podem se referir para verificar juntos o que pensam disso (RANCIÈRE,
2012, p. 21). Trata-se de uma lógica onde o docente reconhece e valoriza as
diversas formas de ensinar e de aprender, sendo por conseguinte receptivo às
sugestões e mudanças que representem um diferencial nas relações pedagógicas já
estabelecidas.
Nesse
esquema de ensino, nós éramos "ignorantes" no sentido de reconhecer
que o nosso “saber” sobre o cinema não seria o fator decisivo para a boa
dinâmica da sala de aula; importava, antes, o modo de nos apropriarmos dos
exercícios-cinema apresentados, ou seja, da nossa boa relação com eles. O que
nos interessava era acolher a confecção de experimentos que desenvolvessem a
sensibilidade em relação à realização cinematográfica e à teoria. Não estamos
querendo dizer, a partir da proposta de
Rancière, que o docente não deva conhecer o cinema (o que, aliás, talvez
não fosse de todo mal), mas que é tão ou mais importante enfatizar outras
dimensões do ensino, tais como: a disponibilidade, a relação e o desejo de
cinema por parte do docente e então disseminado para todos.
Nessa
lógica pedagógica, enfim, nos interessava a necessidade de acompanhar os
projetos individualmente, de discutir cada ponto e de se apresentar aberto à
invenção e ao risco. O risco dos alunos era também o nosso porque não sabíamos
ao certo qual seria o resultado final – apesar do aprendizado mútuo estar
garantido pelo percurso, pelo processo.
Por uma teoria
“fracassada”
Se é a partir de meados da década de 1890 que o cinema se populariza nas capitais europeias, é
só quase três décadas depois que o cineasta e teórico Lev Kulechov funda, em
companhia de outros, a Escola
Estatal de Cinematografia de Moscou, a primeira escola de cinema do mundo (AUMONT;
MARIE, 2009). No contexto
soviético, o cinema se apresentava como meio eficiente para integrar uma nação
recém-socializada de proporções continentais, com uma população
marcadamente rural e analfabeta. Dentro do contexto da nova arte e de uma recentíssima escola, Lev
Kulechov realiza um dos primeiros “exercícios teóricos” do cinema.
O experimento visa a demonstrar um efeito psicológico catalisado
pela montagem que ficou conhecido como “efeito Kulechov”.[3] O
professor-cineasta reuniu diferentes imagens e intercalou-as com a mesma imagem
do rosto do ator Ivan Mozzhujin: assistimos a um prato de sopa quente e em
seguida ao rosto do ator em close up;[4]
depois vemos um caixão, seguido pela mesma face; por fim, assistimos a uma
mulher jovem sucedida pelo rosto de Mozzhujin novamente.[5] Em
todas essas mini-sequências de dois planos,[6] o close up é estritamente o mesmo; no
entanto, a percepção dele se altera dependendo da imagem que o antecede: no
caso da sopa, vemos “fome” na expressão do homem; no caso do caixão, há “luto”
ou “dor”; no caso
da jovem, “desejo”. Kulechov pretendia demonstrar que a montagem era capaz de
criar algo a mais do que simplesmente a soma aritmética do conteúdo dos planos
aglutinados.
Seria a teoria kulechoviana da montagem tão clara ou impactante
sem esses experimentos visuais? Citamos esse caso seminal não para nos atermos
às suas especificidades históricas ou teóricas, mas para observarmos a
estratégia pedagógica utilizada por Lev Kulechov. Assistindo à concatenação de
suas imagens, temos a sensação de compreender a análise fílmica proposta pelo
teórico em outro nível, que não só o da palavra.
Assim, não é só que a teoria cinematográfica tenha se desenvolvido
tardiamente – o primeiro
espaço de formação em cinema da França, por exemplo,
só se desenvolve no pós-guerra (AUMONT; MARIE, 2009) –; é também que a própria matéria de que o
cinema é feito é duplamente arredia à palavra e, portanto, à linguagem e à
teorização: não só porque imagem (áudio)visual, mas porque imagem (áudio)visual
que passa. Logo, a teoria cinematográfica está, por assim dizer, fadada a um
“fracasso”, no sentido de que tenta fixar pela palavra um corpo arredio,
fantasmático, cuja presença no mundo se dá através da experiência evanescente
de quem o assiste.
É por conta dessa dificuldade histórica de análise, que a chegada
do vídeo, na década de 1980,
é tão transformadora para a teoria cinematográfica. A partir do vídeo se torna
possível pausar a imagem, o que revoluciona os modos de pensar e olhar o
audiovisual. Agora, um crítico de cinema poderia reter uma imagem para analisar a
proposta do filme junto aos seus leitores; um professor poderia pausar um plano
específico para demonstrar este ou aquele elemento na composição da cena,
revelando aos alunos potencialidades da imagem até então imperceptíveis.
Jacques Aumont e Michel Marie
comentam que é a partir da pausa
na imagem que “o objeto-filme se torna plenamente analisável” (2009, p. 30). O
teórico Raymond Bellour, em seu clássico Entre-Imagens,
aponta que a parada da imagem, hoje um procedimento comum na produção e no
consumo de audiovisual, produziu uma verdadeira transformação nas formas de
ver, fazer, falar e escrever sobre cinema (BELLOUR, 1997) – particularmente a
partir da popularização do VHS.
Mas, se Bellour reconhece,
por um lado, a relevância da parada da imagem ao esforço teórico, por outro,
ele indica a percepção de algo que permanece arredio e inominável,
indomesticável. E o que encanta Bellour é esse outro lado, que reafirma o
caráter monumental da imagem, potencializado pelo fato de que, em realidade,
essa imagem só existe mesmo, enquanto audiovisual, quando está em movimento.
A impossibilidade da palavra na lida com o movimento que se
projeta diante de nós (seja
numa tela de celular, de computador ou de cinema), já foi abordada por Jean
Epstein, cineasta, poeta e teórico, desde o início da década de 1920. Em 1947,
com Le cinéma du diable, o autor
sinaliza um irracionalismo inerente ao cinema que resiste à racionalidade
embutida na língua, a qual, para ser compreendida, precisaria passar por um
processo de racionalização e inteligibilidade que seria só parcialmente
necessário ao filme – porque uma boa parte de seus significantes prescindem dos
tipos de convenção que regem a palavra (EPSTEIN, 1974).
Epstein antecipa discussões
sobre imagem visual e linguagem que são
desenvolvidas a
partir do pós-guerra e culminam
nos debates estruturalistas da década de 1970. Podemos encontrar, por exemplo, ecos de sua lógica na descrição do
cinema feita por Siegfried Kracauer em um livro de 1960, Theory of film. Segundo Kracauer, o
cinema seria um meio essencialmente materialista, partindo do concreto
ao abstrato (1997, p. 307). O
cinematógrafo seria capaz de preservar, pelo menos em parte, a “franja de
significados visíveis indeterminados” das coisas e dos eventos que registra, de modo que ultrapassaria os domínios da palavra
(1997, p. 303). Roland Barthes vai além e atrela o
indizível ao que há de propriamente cinematográfico: “O fílmico começa somente
onde terminam a linguagem e a metalinguagem articulada” (apud AUMONT, 1995 p. 215).
Essa fronteira irredutível entre palavra e imagem, entre o falar e o ver é igualmente importante para a teoria de Gilles Deleuze sobre
cinema. E será no cinema moderno que o filósofo vai buscar os exemplos mais
contundentes dessa disjunção. Já no livro Foucault,
Deleuze mostra que em India Song, um
filme de Marguerite Duras, “as vozes evocam um antigo baile que nunca será
mostrado, enquanto que a imagem visual mostra um outro baile, mudo, sem que flashback algum possa fazer uma junção
visível, e voz-off alguma uma junção
sonora” (FRANÇA, 2005, p. 32). Foucault
foi lançado apenas um ano após A
Imagem-Tempo, o segundo livro de Deleuze dedicado ao cinema.[7]
Nele, o autor mostra que é a partir sobretudo do cinema moderno que a linguagem
e a imagem visual se encontram dissociadas, constituindo uma relação a partir
de uma não-relação (FRANÇA, 2005).
Não pretendemos nos aprofundar na problemática “imagem visual versus palavra/linguagem”, mas evidenciar sua tradicional importância nos debates
sobre cinema, filosofia e audiovisual. Nessa esteira, teorizar sobre cinema, na verdade, remonta não só à etimologia
latina do termo, cuja acepção é mais conhecida e utilizada (teoría como “concepção, esquema
mental”), mas principalmente à sua etimologia grega: thea
como “vista” e horan como “olhar”,
formando theoros como “aquele que vê,
que olha” e theoria como
“especulação, contemplação, olhar para algo” (LÓPEZ, 2017). A teoria de cinema,
nesse sentido, para se fazer valer deveria não só conceber, argumentar e informar, mas também provocar
visões e sensações, isto é, comunicar uma experiência visual, sonora e sensível.
Primeira versão de Passeio público
Retomar as sobras do filme A
cidade do Rio de Janeiro (1924) vinha do desejo de olhar tais imagens
novamente, de fazer durar a experiência daquele corpo por trás da câmera (de
Alberto Botelho), corpo de um cinegrafista entusiasmado pelo projeto de
modernização em voga na então capital federal; entusiasmado pelas novas
paisagens urbanas que ali germinam – avenidas, praças e jardins públicos,
espaços verdes ornamentados, palmeiras enfileiradas a ladear ruas retilíneas.
As perguntas que fazíamos ao olhar esses restos do filme original eram: o que
podemos realizar com essas imagens esmaecidas e velhas? Como retomar material
tão distante no tempo? Que escolhas e implicações estão em jogo nesse gesto?
Ao fazermos nosso próprio projeto, escolhemos o conceito de fotogenia (explorado por Jean Epstein
nos anos 1920) para trabalhar com o que restou do filme.[8] O
trabalho de edição/montagem foi, portanto, um processo de elaboração, pesquisa,
aprendizado, apreciação. Durante um punhado de semanas, questões formais,
problemas ligados à materialidade do suporte original e perguntas históricas
assomaram-se ao fascínio de olhar reiteradamente fragmentos de jardins públicos
adornados por pontes e chafarizes, avenidas onde multidões de pedestres se
entrecruzam e dispersam-se, ruas atravessadas por linhas de bonde e pelo
frenesi dos automóveis, os cinemas, as redações dos jornais diários. A capital
do país surge como cenário convulsionado por mudanças vertiginosas – cirurgias
urbanas para redesenhar o espaço e a vida cotidiana da cidade, sob moldes
modernizantes.
Todavia, um plano de uma moça a caminhar na avenida nos cativou
desde o início. A jovem, de olhos grandes e cabelo curto no estilo melindrosa,
caminha na direção da câmera de Botelho, lançando olhares discretos e curiosos
para ela. A câmera, por sua vez, acompanha sua aproximação em panorâmica,
propiciando um encontro flamejante de olhares (do cinegrafista, da jovem
passante, do futuro espectador). É essa imagem que, tornada close por conta da
gradual aproximação da passante, fomentou nosso desejo de tornar a capital da
Velha República uma experiência não apenas visual, mas corpórea, tátil.
A caminhada da jovem no boulevard,
ralentada ao máximo na edição, anula de modo gradativo as coordenadas espaciais
e habilita o primeiro plano como medida de escala da cidade. De certo, havia
outros planos onde pedestres olhavam curiosos para a câmera. Selecionamos a
jovem melindrosa, no entanto, por conta do corpo que se torna rosto, do
caminhar em direção ao aparato, do olhar dúbio que, no jogo entre hesitação e
firmeza, mostra a rua como lugar do encontro à primeira e última vista. Tal
como evocado em “A uma passante”, poema de Charles Baudelaire.
Olhávamos repetidamente para essa imagem e ela nos olhava de
volta. Poderia a qualidade fotogênica
dos seres e dos objetos residir nesse “olhar de volta” da imagem? A fotogenia
poderia revelar-se na presença da imagem avassaladora
e efêmera? Ou ainda: seria o gesto da montagem capaz de favorecer – pela
repetição, desaceleração, congelamento – a aparição não simplesmente de um
rosto, mas de sua fugidia emoção espraiando-se pelos restos do material a ser
retrabalhado? É possível imaginar um olhar correspondido que atravessa as
épocas? Uma reciprocidade que eventualmente se revela e propicia a insólita
experiência de que somos nós, espectadores, o elemento de passagem, diante da
imagem, e que ela é, perante nós, não o elemento do passado, mas do futuro, que
sobreviverá a nós?
Passeio Público é, como
os trabalhos apresentados pelos alunos da disciplina de Teoria e Crítica, um
“experimento”. Embora não soubéssemos ao certo aonde chegaríamos com nossa
proposta, queríamos enfatizar os elementos que constituem a própria
singularidade do cinema: os ângulos, o olhar, a percepção dos sons, dos ritmos,
das sombras e das luzes, a montagem, os planos, a composição de todos esses
elementos e as impressões e sentimentos que eles despertam – para além das
interpretações do conteúdo fílmico. É a partilha desses elementos que pode
despertar e exercitar um olhar mais distraído, convocando a todos – discentes e docentes
– por meio de ações mediadas e planejadas. Ao
término do curso, exibimos o curta em conjunto com os alunos e discutimos
coletivamente, horizontalizando o espaço da sala e propondo que o objetivo
final daquelas exibições fosse mais o cinema - ou melhor, o desejo de cinema -
enquanto experiência coletiva (de troca, desacordo, diálogos) do que a nota ou
a avaliação.
Passeio Público propiciou portanto não
apenas um olhar renovado sobre a cidade carioca, antiga capital do país, como
permitiu que exercitássemos ao máximo a inventividade, a partir do ato de
assistir a sobras de um filme antigo de Alberto Botelho. Do mesmo modo que
solicitamos aos alunos, também nós pensamos alternativas de finais, modos
possíveis de se contar a história, de inventar a cena, etc. Aprendemos, durante
o processo de realização do curta, que velhas imagens estão povoadas de
elementos que lá permanecem à espera de alguém que os possa revelar e
interpretar no futuro (da imagem).[9]
Considerações finais
Acreditamos
que nosso experimento, tanto o curta quanto a experiência pedagógica, também
sugere o abandono de uma atitude passiva por parte dos alunos (=espectadores de
cinema) e seu engajamento em uma outra maneira de estudar teoria, pensar, fazer
e ver filmes, de aprender a apreciá-los na sua dimensão sensível e estética.
Afinal, como mobilizar energias individuais e coletivas de uma garotada na
faixa dos 20 anos para realizar uma alternativa ao modelo de ensino expositivo,
hierarquizado, tão caro a uma disciplina de teoria? Como partilhar a história
do cinema e do audiovisual, suas teorias, conceitos e ao mesmo tempo inspirar a
reflexão do discente e até mesmo divertir, desafiar, afetar?
Assim,
defendemos que por ser feito de imagens que passam, imagens móveis, o cinema e
também o audiovisual – as telenovelas, as séries, as web-séries, os produtos em
plataformas streaming e em diferentes janelas de exibição – são um solo fértil
para metodologias nas quais, como demonstramos ao longo do capítulo, o pensar reflexivo
possa se aliar ao fazer e à criação fílmica. O pensamento crítico torna mais
rica a realização e a fruição estética, assim como um plano, um movimento de
câmera ou uma cena podem provocar encontros imprevisíveis (o cinema como
alteridade) e, com isso, incitar questões impensadas ao pensamento.
Finalmente,
diante do contexto de pandemia da COVID-19, no qual a necessidade da quarentena
demanda um afastamento dos corpos físicos, é precisamente o audiovisual e suas
tecnologias digitais que se tornam centrais para a garantia do vínculo social e
da troca pedagógica. Nesse contexto, pensar novas formas de pedagogia implica
necessariamente convocar imagens, filmes e propostas audiovisuais diversas, de
modo não só a garantir o direito à fruição de bens culturais como sobretudo
garantir a relação com o mundo das imagens e seu desdobramento – a constituição
de subjetividades sensíveis, expressivas e singulares. Com isso, a abordagem de
ensino aqui demonstrada pode eventualmente contribuir para pensar uma dinâmica
de aula mais afim ao meio audiovisual e à separação entre corpos que por ora se
faz necessária.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da
experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
AUMONT, Jacques. Pode um filme ser um ato de teoria? Educação e Realidade – Revista da Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul n. 33. Jan/Jun de
2008.
AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas, Papirus,
1995.
______; MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa: Edições
Texto e Grafia, 2009.
BELLOUR, Raymond. Entre-imagens. Campinas: Papirus, 1997.
BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro:
Graal,1988.
FRANÇA, Andréa. Foucault
e o cinema contemporâneo. ALCEU – Revista
de Comunicação, Cultura e Política, v. 5, n. 10, 2005.
EPSTEIN, Jean. Écrits
sur le cinéma: tome 1. Paris: Édition Seghers, 1974.
KRACAUER, Siegfried. Theory of filme: the redemption of physical reality. Londres; Nova York: Oxford University Press,
1997.
LÓPEZ, Maximiliano.
Teoria da escola. In: LARROSA, Jorge. Elogio
da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
RANCIÈRE,
Jacques. O espectador emancipado. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2012.
[3] Há uma repetição por Hitchcock disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TNVf1N34-io>.
[4] Close up
ou Primeiro Plano é o tipo de enquadramento em que a câmera parece estar mais
próxima daquilo que filma. O exemplo mais clássico é o rosto de uma pessoa.
Quando essa proximidade é praticada em relação a algo que não é a face humana
(ex.: uma mão, um olho, um lápis, uma mosca), costuma ser chamado de Plano
Detalhe, ou simplesmente Detalhe.
[5] O exercício de Kulechov está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=_gGl3LJ7vHc>.
[6] Plano é um trecho de imagem de
filme rodado ininterruptamente. É, portanto, um conjunto ordenado de fotogramas
ou imagens fixas, limitado espacialmente por um enquadramento (que pode ser
fixo ou móvel) e temporalmente por uma duração.
[7] O primeiro foi A Imagem-movimento, publicado, no Brasil, pela Editora 34 em 2004.
[8] Há três trabalhos de alunos que ainda estão
acessíveis online. Num deles, intitulado “Fugere”, usa-se o conceito de cine-olho de Dziga Vertov para
problematizar o urbano (contrariando a visão otimista de Vertov sobre o
progresso técnico-industrial) enquanto se explora a versatilidade espacial do
olho maquínico da câmera, que pode estar em lugares impossíveis ao olho humano
(um dos vários elogios que Vertov faz ao cine-olho,
que tenderia à onipotência, onisciência e onipresença) – disponível em:
<m.youtube.com/watch?v=5tcEdME16d8>. Em outro, intitulado “Da nossa
janela indiscreta”, explorou-se a noção de dispositivo,
do Cinema de dispositivo, em um enquadramento feito através de uma janela,
mirando várias janelas de outros prédios; no vidro da janela principal, através
da qual a câmera olha o mundo, vê-se o reflexo de uma tela retangular (mais uma
“janela”) que exibe um trecho de Janela
indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock – disponível em:
<http://www.youtube.com/watchv=tR_joFqY&feature=youtu.be>. Por fim, há
“Retrato”, curta-experimento em que se usa a noção de imagem de arquivo, do Cinema de arquivo, para se produzir reflexões
sobre a vida e a personalidade de uma senhora já falecida a partir da montagem
intercalada de fotos antigas, imagens filmadas no presente, músicas e
letreiros. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=uqN67MLWQQg&feature=youtu.be>.
[9] Os pedaços do filme de Botelho exigiram a pesquisa nos arquivos da
Biblioteca Nacional, as conversas com os pesquisadores Eduardo Morettin e Flavia
Cesarino Costa, os encontros com o Conservador-Chefe da Cinemateca do MAM,
Hernani Heffner, e as várias trocas de e-mails com Rosângela Sodré, na época
pesquisadora do CTAv, no Rio de Janeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário