Educar para quê?
A atenção é a forma mais rara e pura de generosidade.
Simone Weil
A primeira vez que pensei sobre
Educação foi quando fazia o curso de cinema na UFF e fui convidada a participar
da equipe do Cineduc. Até então nunca tinha me detido no assunto e,
francamente, olhava com certo preconceito intelectual porque as pessoas da área
que eu conhecia me pareciam muito limitadas na cultura e nas práticas
cotidianas. Eram conservadoras nos costumes e na maneira de analisar o mundo e
viam as relações sociais de forma francamente preconceituosas.
Não percebia, no momento, quantos
professores eu tive, sobretudo no ensino médio, que foram, para o bem ou para o
mal, os que contribuíram para a formação das minhas opiniões.
Ao pensar sobre o assunto, a primeira
ideia que me veio então é que Educação não diz respeito somente ao processo de
escolarização, mas de um processo indizivelmente mais amplo. A partir dessa
ideia, precisei rever, ou fundar, novos pensamentos sobre o que eu já fazia:
Arte / Fotografia / Cinema / Jornalismo. Tive também de abrir uma nova área de
conhecimento, ampliando as interseções existentes entre o pensamento teórico / filosófico
/ científico dos autores que estudava na época, que faziam parte do estudo de
Comunicação Social ou dos meus interesses pessoais.
Educação e Arte são dois
continentes difíceis de serem definidos. Seus conceitos variam conforme a época
e a visão de mundo de quem analisa. Os dicionários são concisos ao conceituar e
dar suas significações. Entende-se. Afinal existem bibliotecas inteiras
específicas para se deter nessas imensidões que são a Arte e a Educação.
Fica difícil entender os dois ramos
do conhecimento e suas práticas sem adentrar outras áreas. Normal: a vida real
não é feita de camadas estanques, e sim de estruturas com causalidade
extremamente complexa e nada óbvia. Por ser um campo imenso, o estudo da vida,
da existência e do universo se dividiu em “disciplinas” para facilitar a pesquisa
e a compreensão de cada uma delas e ter, tanto quanto possível, o entendimento
do todo. Então as Ciências Sociais, a Linguística, a Psicanálise e Psicologia,
a Filosofia, entre muitos outros, são estudos fundamentais para pensar uma
prática cotidiana no ambiente escolar ou educacional em sentido mais amplo,
como interações e mediações fora da escola formal.
Há também o fato de que o que se
deseja da Educação, mesmo para os que só a percebem como instrução e preparação
para o mercado de trabalho, muda constantemente, sobretudo neste momento, em
que a tecnologia e o modus faciendi social é tão cambiante que não sabemos, só
podemos imaginar, como será a comunicação e demais trocas sociais no futuro
próximo, incluindo as demandas do mercado de trabalho.
Me interessa, mais do que enumerar
conceitos e metodologias, observar e fazer a crítica de como os educadores e
gestores se comportam no dia a dia da maioria das escolas. Mas devo acrescentar
que meu primeiro contato teórico, fundamental, foi com A Pedagogia do Oprimido,
de Paulo Freire que, como para muitas pessoas, foi fundamental para pensar
ações.
Em primeiro lugar, cabe apresentar
o Cineduc aos que não conhecem. A entidade nasceu em 1970 no âmbito da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil) a partir de uma iniciativa que surgiu no Equador
em 1967 com o nome de “Ismaelillo”, uma ação teórica e prática do professor da Universidad
Central de Quito, Luiz Campos
Martínez. Percebendo o fraco resultado
dos alunos na apreciação artística e
temática dos filmes, Martínez decidiu realizar a experiência de reunir crianças
de diversas classes socioeconômicas em projeções cinematográficas em escolas
católicas, seguidas de diversos estímulos para o diálogo e a criação artística
a partir dos filmes vistos. O projeto incorporava ideias que Antoine Vallet
apresentou no livro “Du
Cine-club au langage total” (Vallet, 1968), levando em conta as diferenças e devidamente
adaptadas ao contexto latino americano.
A experiência de Martinez teve excelentes resultados e foi incorporada pela SAL-OCIC (Secretariado para a América Latina da Organização Católica Internacional de Cinema), com vistas a implanta-la em países da América Latina com o nome de PLAN DENI (Plano de Niños). Inicialmente, além do Equador, o Plan Deni se fixou no Peru, Uruguai, Brasil e República Dominicana, em seguida no Paraguai e Bolívia. O fundamental nesse trabalho era apresentar às crianças e jovens a linguagem cinematográfica e seus recursos técnicos para a formação de sentidos, buscando uma educação para a leitura de imagem desde a infância.
O Cineduc faz, então, parte de um programa para contribuir no processo educativo transformador através do desenvolvimento da consciência crítica, da descolonização do olhar, da reavaliação de temas perpassados por preconceitos, da ética e da expressão criativa.
A trajetória do Cineduc
através desses 50 anos é difícil de ser resumida. Acompanhou as mudanças
tecnológicas e comportamentais e vivenciou experiências em todos os estados
brasileiros, com todas as classes sociais. Por ser pioneiro no Brasil na área
de cinema e educação, o Cineduc enfrentou alguns desafios e muita solidão no
que concerne ao desenvolvimento do pensamento e na criação e avaliação das suas
ações. No começo dos anos 1970 poucos tinham o entendimento do que o cinema
oferecia em termos de formação do caráter e do gosto estético, e sobretudo a
relação política entre estética e ética. A academia ainda não se preocupava com
esse tema, o cinema entrava nas escolas apenas como substituto para professores
faltosos ou ilustração de matérias da grade curricular.
Nos cinemas comerciais, as ofertas de
programação infantil eram poucas e restritas à produção americana. O mesmo
acontecia com a televisão, onde, além de obras americanas, começavam a chegar
as japonesas, o que gerou algumas mudanças no gosto das crianças.
Para ter uma ação efetiva, o Cineduc
começou a penetrar em várias áreas relacionadas ao cinema: na formação, com
cursos e oficinas para alunos e para os professores; na produção e difusão de
conhecimento, com pesquisa, documentação, publicações, consultorias, produção
de filmes, programas de TV e participação em seminários e mesas redondas; e na
exibição, com programações em centros culturais, curadorias e realização de
festivais internacionais.
O pensamento teórico do Cineduc foi
desenvolvido de forma eclética, já que as pessoas que trabalhavam e discutiam
ações e seus porquês tinham formações diversas: eram professores,
arte-educadores, cientistas sociais, filósofos, psicólogos e alguns membros
eram formados em comunicação social (jornalismo e cinema). Para harmonizar
esses saberes e fazê-los convergir para uma atuação com os resultados
desejados, foram necessárias muitas discussões e trocas de informações, muita
leitura diversificada, mas que seguia um rumo para os teóricos da linguagem, da
psicanálise, da educação, da filosofia e, mais especificamente, do cinema.
O que é, afinal,
educar?
Desde a antiguidade, passando pelos grandes teóricos da idade média, como Comenius, chegando aos mais recentes filósofos e psicólogos da Educação, a finalidade do ato de educar é mediar a conquista do autoconhecimento e da emancipação, da criação de seus próprios pensamentos e entendimentos, a autonomia de compreender o mundo e buscar seus próprios caminhos. Só através de uma educação abrangente se pode chegar a esse fim. Portanto, a escola não deveria abarcar somente os conhecimentos objetivos, técnicos ou científicos, como se faz no mais das vezes, até mesmo relegando a segundo plano os estudos das humanidades, as reflexões sobre a qualidade da existência humana. É preciso também estimular as leituras e compreensão de outras formas de expressão criadas para dar conta desse universo que é a mente – ou alma – humana. As formas artísticas, poéticas, que lidam com a subjetividade, com o simbólico, a representação, o caótico, sem função imediata que não a fruição e a identificação, é que podem provocar, sacudir o pensamento, trazer novas dimensões ao entendimento de si mesmo e da alteridade. Afinal, como diz Bartolomeu Campos de Queirós, “pela leitura criamos laços e nos aproximamos. Ler é somar-se ao outro, é confrontar-se com a experiência que o outro nos certifica”. (Queirós, 2013, p. 19)
Importante também é ampliarmos o
entendimento do conceito de “leitura” para além da escritura da língua. Ler é
decodificar, perceber, interpretar. É uma atividade que nos permite aperfeiçoar
a nossa própria expressão, a partir do exercício diário de cada uma das
linguagens presentes no nosso cotidiano. E atualmente, quando podemos ter,
compartilhando a mesma tela, uma variedade de “falas” – textos escritos, fotos,
desenhos, filmes, falas, músicas, ruídos (inclusive a diagramação, as expressões
faciais e corporais) – precisamos ter competências para entender cada uma
delas. Cabe sobretudo à escola desenvolver essas competências.
Numa época em que necessidades e
desejos são criados e estimulados para favorecer o consumo, a competição é
acirrada e medida pelo poder de compra, a inserção dos jovens nos grupos se dá
sobretudo pelo uso de produtos, eles podem vir a aceitar acriticamente certos
comportamentos. Isso é parte estimulado dentro das escolas pelas interações
entre alunos e com professores, no currículo oculto, onde aprendemos a ocupar o
nosso espaço na sociedade, seja ele qual for, de comando ou de submissão.
É também através da escola, como
Aparelho Ideológico de Estado, que se dá a reprodução do status quo. O cineasta
Pier Paolo Pasolini propunha
que “o novo poder da sociedade consumista, [é] o poder mais centralizador e,
portanto, mais essencialmente fascista que a história jamais registrou”
(Pasolini, 1990, p. 68). Para o cineasta, o consumismo é a nova escravidão – se
opondo totalmente à ideia de emancipação, que deveria ser a finalidade última
da educação.
O filósofo Byung-Chul Ham desenvolve
pensamento semelhante trazendo-o para o momento atual, em que além do viés do
consumo, existe também a crise do trabalho, com os detentores dos meios de
produção buscando a todos custo fragilizar as relações trabalhistas e tentando
transformar a mão-de-obra em “empreendedorismo”.
Com o advento da internet e da
facilidade de se obter informação, não foram poucos os que acreditaram que a
mediação do professor e da escola já não tinha tanto sentido como
anteriormente. Mas o que estamos vendo é justamente o contrário, uma massa de
informações tão grande, que fica difícil organizá-la na mente, sem falar nos
erros e mentiras voluntariamente criadas para confundir. Ham coloca que “a
hiperinformação e hipercomunicação gera precisamente a falta de verdade,
sim, a falta de ser. Mais informação e mais comunicação não afastam a
fundamental falta de precisão do todo. Pelo contrário, intensifica-a
ainda mais”. (Ham, 2019, p. 25). Só com uma mediação questionadora,
provocadora, essa fragmentação pode ser organizada criativamente, a favor da
reflexão, da inventividade e, aí sim, da emancipação.
Pensando
e agindo
Desde o início da minha participação,
levei para o grupo as minhas influências mais importantes: Reich, Freud,
Althusser, na sua leitura de Aparelhos Ideológicos de Estado, Foucault,
Saussure e, mais tarde, Bakhtin.
Dos textos que mais me influenciaram na
criação de ações está o do professor da USP (Universidade de São Paulo) Alfredo
Bosi (1988, p. 65), primeiro na palestra do seminário da Funarte, O Olhar,
depois na coletânea que resultou:
A cultura grega, acentuadamente
plástica, enlaçava pelos fios da linguagem o ver ao pensar, Eidos, forma ou figura, é termo afim a Idea. (...) O ato de olhar significa um
dirigir a mente para um “ato de in-tencionalidade”, um ato de significação que,
para Husserl, define a essência dos atos humanos. (...) Os gregos e os romanos
helenizados pensaram em duas dimensões axiais do olhar:
· o olhar receptivo;
· o olhar ativo.
O olhar receptivo,
afirma, apenas recebe estímulos luminosos, necessários ao reconhecer, medir,
definir, caracterizar, interpretar, pensar sem intencionalidade. O olhar ativo
é o olhar de quem procura, busca captar e analisar. Este último é o que
procurei estimular nas ações do Cineduc. Mas como podemos fazer isso? No mesmo
texto, o professor Bosi (1988: 82) nos deu a pista: estimulando o uso da
atenção, como defendido por Simone Weil e seu mestre Alain: a atenção como
atividade superior da mente e princípio estratégico para lutar contra a máquina
social.
“É
bom ver uma criança acompanhar dia a dia o crescimento de uma planta em suas
pequenas e contínuas mutações; ou o crescimento de um animalzinho. Não para ter
noções de Botânica ou Zoologia, mas para sair de si mesmo, alegrar-se com uma
vida que não é a sua. Observando, assim, a criança consegue transcender o ego e
procura escutar e ver sinais da natureza e do outro.” – trecho de Simone Weil
citado pela professora Ecléa Bosi – Artigo na Biblioteca de Psicologia da USP –
A Atenção em Simone Weil – 2003
Para
Simone Weil a atenção é uma forma alta de generosidade. Todas as outras
vantagens da instrução são secundárias comparadas ao exercício da atenção: é um
bem em si independente de recompensa ou aquisição de informações. Os estudos
são nada mais que uma ginástica da atenção, seja qual for seu conteúdo.
Nós, do Cineduc,
acreditamos que a dispersão constante, a falta de atenção aos fatos, às
mensagens da mídia, aos seus próprios sentimentos e sensações tornam as pessoas
apenas receptivas. E acreditamos também que essa forma de “estar no mundo” é
socialmente estimulada, sobretudo numa sociedade de consumo e com extrema
valorização da tecnologia.
Cada vez mais, na
prática diária no Brasil inteiro, percebemos que existe uma desvalorização do
pensamento. Nossa sociedade, aí incluindo muitos professores, preza apenas as
realizações que tenham materialidade, que resultem em produtos palpáveis, e
consideram qualquer reflexão mais aprofundada como “teórica”, e isso para eles
quer dizer “sem funcionalidade”. Precisamos entender que essas duas práticas
(porque o pensamento é uma prática) não são antagônicas, como apregoa essa
coletividade com pensamento dualista, onde acreditam que corpo e mente são
entidades opostas, que razão e emoção se contrapõem, que forma e conteúdo podem
ser compreendidos separadamente.
Da mesma forma que saber juntar as
letras para formar palavras não significa saber interpretar um texto, olhar não
significa saber ver. Como toda linguagem, as linguagens visuais possuem
elementos óbvios, explícitos, de fácil compreensão, e elementos sutis,
semânticos, que são muitas vezes só percebidos pelo subconsciente. Quanto mais
atentos estivermos na apreciação de uma obra, melhor percebemos os pontos de
vista do autor, seus valores políticos e éticos, mais fácil se torna
interpretá-la e julgá-la e, sem dúvida, extraímos dela maior prazer estético.
No caso da fotografia, da reportagem
e do documentário, esse conhecimento se faz ainda mais necessário, pois como
são trabalhos captados do real, tendem a ser interpretados como a realidade em
si, e não como o resultado do ponto de vista do autor.
Um bom exemplo de uso extremo da
atenção para compreender e apreciar uma obra, que é a expressão por vezes mais
profunda do outro, é a análise que Freud faz do “Moisés” de Michelangelo no seu
ensaio de psicanálise aplicada “El “Moisés” de Miguel Angel” (Freud, 1968 p.
1069), em que descreve minuciosamente cada detalhe da escultura para perceber
seus próprios sentimentos, de que maneira ele, Freud, é por ela afetado, para
concluir que sua análise não diminui absolutamente o impacto causado pela obra.
Portanto, a leitura atenta e cuidadosa
da mídia e do comportamento social é estimulada pelo Cineduc. Não é possível
ter uma visão mais acurada do cinema, não é possível ser crítico com o uso da
linguagem e das escolhas estéticas de um autor se não pudermos observar se a
obra reforça ou questiona preconceitos. E não podemos analisar tais coisas se
não estivermos profundamente atentos.
Por outro lado, a atenção é a matéria
prima dos autores. O olhar atento do fotógrafo através do visor de sua câmera é
que realiza a linguagem, sendo a técnica apenas sua ferramenta.
Sobre o ato de perceber, Pier Paolo
Pasolini disse: “existem
certos loucos que observam as caras das pessoas e o seu comportamento (...) porque
conhecem a semiologia. Sabem que a cultura produz certos códigos; que os
códigos produzem certos comportamentos; que o comportamento é uma linguagem; e
que num momento histórico em que a linguagem verbal é inteiramente convencional
e esterilizada (tecnocratizada) a linguagem do comportamento assume uma
importância decisiva.” (Pasolini, 1990, p. 88)
A metodologia do
Cineduc se assenta, portanto, desde o início, numa base triangular, ou seja, em
três práticas complementares: refletir sobre o cinema e sua história, “ler”
atentamente imagens e sons, e criar peças audiovisuais em diversos suportes.
Não existe uma ordem de grandeza entre essas ações. Todas são importantes e
devem se alternar, criando entre elas uma relação dinâmica e dialógica.
Foram criados
exercícios para estimular a percepção sensorial, sobretudo a visual e a
auditiva; meios de fazer compreender que um trabalho sobre o real não é o real
em si e sim uma representação dele, carregada da visão de mundo do autor para
causar uma impressão no espectador; técnicas para expressão do que foi
percebido das obras vistas e troca de ideias entre os espectadores; e
exercícios para a criação de narrativas visuais e auditivas em diversos
suportes, até chegarmos à realização de filmes.
Olhar sobre a mídia;
olhar sobre o mundo
O avanço tecnológico gerou,
finalmente, uma certa democratização nos meios de produção de imagens e sons,
bem como de sua veiculação e difusão. Digo uma certa porque ainda temos no
Brasil e na população mundial uma quantidade enorme de pessoas sem acesso a
esses meios. De qualquer forma, devemos refletir que o fato de muitos poderem
expressar suas ideias e sentimentos não basta para temos uma real
democratização, se o produto conseguido for apenas uma repetição infinita do
discurso hegemônico do senso comum. O contato com obras diversificadas suscita
maior reflexão, ajuda a ver o mundo de vários pontos de vista, melhora o
autoconhecimento e, portanto, propicia um novo discurso.
Apesar de há mais de 60
anos termos uma crítica sólida e cada vez crescente ao atual currículo escolar
e à sua forma de transmissão de conhecimento, a escola continua repetindo não
só o discurso como também os atos, configurados como um currículo oculto,
reproduzindo o status quo social, que
mantém o sistema de privilégios.
Nessa conjuntura, pleiteia-se o uso de
filmes e outros meios audiovisuais para dinamizar uma aula que pode ser
aborrecida para os alunos. Argumenta-se que os jovens gostam de imagens. Isso é
verdade, mas não só para os jovens. Os mais velhos também gostam. Mas como os
jovens, não gostam de qualquer imagem. Da mesma forma que todos gostam de
música, mas não é comum os jovens gostarem de Verdi. Um professor bem-intencionado
levou “Cidadão Kane” para sua sala de aula e ficou chocado porque os alunos
detestaram o filme.
Há tempos, tive uma grande surpresa ao
desenvolver uma ação para o Ministério da Justiça em uma favela carioca das
mais violentas. Tratava-se de projetar filmes para jovens entre 15 e 22 anos
que estavam em situação de risco. Nos 12 encontros que tivemos, nenhum tipo de
filme despertou qualquer interesse na plateia: curtas de ficção com cunho
social, documentários, animações internacionais de longa metragem, confecção de
zootrópio e outros aparelhos óticos pré-cinema. No último encontro,
desesperançada, coloquei um trecho de “Um homem com uma câmera”, de Dziga
Vertov. E foi impressionante: ficaram encantados. Quiseram saber tudo sobre o
autor. Aproveitei e coloquei um pequeno videoarte de Bill Viola. Mais sorrisos.
Creio que esse foi um dia de descoberta para eles.
O filme não é panaceia para curar a
falta de interesse dos alunos em uma aula. Também não o é para tirar os jovens
do que chamamos de “alienação” das questões mais amplas da sociedade que
interferem diretamente no cotidiano deles, como muitos acreditam ao mencionar o
desenvolvimento da consciência crítica. É preciso também estimular a “leitura”
do conjunto da sociedade, a percepção da distância entre o que uma coletividade
diz e o que ela faz. Por exemplo, fala-se muito em fraternidade e em
cooperação, mas age-se a competição. O discurso do Amor é confrontado
com as ações do Ódio.
Para fazer avançar a conquista de um
gosto estético no cinema, é necessário abrir o leque de opções de filmes, com
uma curadoria diversificada em gêneros e culturas, em linguagens e formas. Como
também estimular a frequência em equipamentos culturais da cidade, a leitura, a
ida a teatro, exposições de arte, shows de música etc. Ver muito, ouvir muito,
perceber muito. Não podemos deixar de observar que a cultura do cinema bebeu na
fonte da dramaturgia, do folhetim e (bem como a fotografia) da pintura.
Costumamos
frequentemente ver duas posturas opostas no trabalho de realização de filmes em
escolas ou projetos sociais: a primeira pleiteia a não interferência de forma
alguma no processo, deixando os alunos absolutamente livres para criar suas
obras. A segunda quer tomar as rédeas do processo, para tentar garantir um
mínimo de qualidade técnica e de “adequação” temática. Na primeira, perde-se a
oportunidade de discutir a realização; na segunda, o aluno não é autor. O velho
e bom equilíbrio é necessário, mas é também difícil de ser alcançado, pois cada
caso é um caso. Outra coisa que observamos é que, tanto em um caso como no
outro, existe uma tendência geral a copiar o que é visto na mídia: narrativa das
novelas e filmes B hollywoodianos, reportagens, documentários expositivos,
enfim, o que existe de mais óbvio e redundante na mídia. Percebemos cada vez
mais a tendência a olhar a mídia e olhar pouco o mundo.
No Cineduc, nossa postura é deixar que
eles criem, mas questionando cada escolha, seja de roteiro, seja na colocação
da câmera na hora da filmagem, seja na fase da montagem, para que o processo de
criação seja plenamente consciente e autoral. E recomendamos um olhar mais
atento para o cotidiano, não podemos deixar de dizer que a poesia está no
mundo. Quando vemos na mídia algo que nos emociona, certamente o autor, ao
fazê-lo, viu o mundo com poesia.
O prazer de ver é um mistério. O
que nos comove quando estamos diante de uma obra de Van Gogh, de um filme de
Wong Kar Wai ou de um pôr do sol no Arpoador? O que nos faz gostar de fotos de
Henri Cartier-Bresson?
Costumamos analisar a construção
dessas imagens. Equilíbrios das formas, das tonalidades, enquadramento, edição
etc. Mas isso não explica muita coisa, porque às vezes ficamos tocados por
imagens desequilibradas, sujas, mal iluminadas. Imagens nos tocam de formas
diferentes, porque as preenchemos de significados.
Imagens que nos dizem o que já
sabemos de forma redundante podem nos causar algum frisson emocional temporário, mas as que ficam e transformam algo
em nós, nos dão prazer realmente, são aquelas que provocam surpresa em algum
grau, que nos mostram pontos de vista que ainda não tínhamos percebido, que nos
levam a outro patamar de reflexão sobre aspectos do mundo.
Nos nossos cursos para
professores ainda é muito comum pedirem algumas fórmulas e receitas, que é algo
diametralmente oposto ao fazer criativo. Preferimos nos unir ao pensamento do
educador e psicanalista brasileiro Rubem Alves, colocado no texto “A complicada
arte de ver” (www.rubemalves.com.br):
O ato de ver não é
coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a
primeira tarefa da educação é ensinar a ver. (...) Por isso - porque eu acho
que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que
se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar,
mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da
banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria
partejar "olhos vagabundos”...
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Interminável. São Paulo: Cosac& Naify, 2004.
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Hipótese-Cinema: pequeno tratado de
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“Moisés” de Miguel Angel, in Obras Completas. Espanha: Editorial Biblioteca
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pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
NOVAES, Adauto – organização, O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
QUEIRÓS, Bartolomeu Bueno de, “Sociedade positiva” prefácio, O direito de Ler e de Escrever, de Silvia Castillón, Editora Pulo do Gato – São Paulo, 2013.
SILVA. Tomaz Tadeu da, Documentos de Identidade, uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
VALLET, Antoine, Du Cine-club au langage total. Paris: Ligel, 1968.
VIGOTSKI, Lev, A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
FILMOGRAFIA CITADA:
Cidadão
Kane – “Citizen Kane”, 1941, filme – direção: Orson
Welles, EUA: RKO Radio Pictures
Um
homem com uma câmera
– “Chelovek s kino-apparatom",
1929, filme – direção: Dziga Vertov, União Soviética: VUFKU
WEBGRAFIA:
Texto Rubem Alves:
disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u947.shtml visitada em 24/03/2014
Cineduc – Cinema Educação: disponível em www.cineduc.org.br
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