última atualização 09-01-2023

Dicionário da Educação Audiovisual - EDUCAÇÃO


Elisabete Bullara
Cineduc - Cinema e Educação
bete.bullara@cineduc.org.br

Educar para quê?

 

A atenção é a forma mais rara e pura de generosidade.

Simone Weil

 

A primeira vez que pensei sobre Educação foi quando fazia o curso de cinema na UFF e fui convidada a participar da equipe do Cineduc. Até então nunca tinha me detido no assunto e, francamente, olhava com certo preconceito intelectual porque as pessoas da área que eu conhecia me pareciam muito limitadas na cultura e nas práticas cotidianas. Eram conservadoras nos costumes e na maneira de analisar o mundo e viam as relações sociais de forma francamente preconceituosas.

Não percebia, no momento, quantos professores eu tive, sobretudo no ensino médio, que foram, para o bem ou para o mal, os que contribuíram para a formação das minhas opiniões.

Ao pensar sobre o assunto, a primeira ideia que me veio então é que Educação não diz respeito somente ao processo de escolarização, mas de um processo indizivelmente mais amplo. A partir dessa ideia, precisei rever, ou fundar, novos pensamentos sobre o que eu já fazia: Arte / Fotografia / Cinema / Jornalismo. Tive também de abrir uma nova área de conhecimento, ampliando as interseções existentes entre o pensamento teórico / filosófico / científico dos autores que estudava na época, que faziam parte do estudo de Comunicação Social ou dos meus interesses pessoais.

Educação e Arte são dois continentes difíceis de serem definidos. Seus conceitos variam conforme a época e a visão de mundo de quem analisa. Os dicionários são concisos ao conceituar e dar suas significações. Entende-se. Afinal existem bibliotecas inteiras específicas para se deter nessas imensidões que são a Arte e a Educação.

Fica difícil entender os dois ramos do conhecimento e suas práticas sem adentrar outras áreas. Normal: a vida real não é feita de camadas estanques, e sim de estruturas com causalidade extremamente complexa e nada óbvia. Por ser um campo imenso, o estudo da vida, da existência e do universo se dividiu em “disciplinas” para facilitar a pesquisa e a compreensão de cada uma delas e ter, tanto quanto possível, o entendimento do todo. Então as Ciências Sociais, a Linguística, a Psicanálise e Psicologia, a Filosofia, entre muitos outros, são estudos fundamentais para pensar uma prática cotidiana no ambiente escolar ou educacional em sentido mais amplo, como interações e mediações fora da escola formal.

Há também o fato de que o que se deseja da Educação, mesmo para os que só a percebem como instrução e preparação para o mercado de trabalho, muda constantemente, sobretudo neste momento, em que a tecnologia e o modus faciendi social é tão cambiante que não sabemos, só podemos imaginar, como será a comunicação e demais trocas sociais no futuro próximo, incluindo as demandas do mercado de trabalho.

Me interessa, mais do que enumerar conceitos e metodologias, observar e fazer a crítica de como os educadores e gestores se comportam no dia a dia da maioria das escolas. Mas devo acrescentar que meu primeiro contato teórico, fundamental, foi com A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire que, como para muitas pessoas, foi fundamental para pensar ações.

Em primeiro lugar, cabe apresentar o Cineduc aos que não conhecem. A entidade nasceu em 1970 no âmbito da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) a partir de uma iniciativa que surgiu no Equador em 1967 com o nome de “Ismaelillo”, uma ação teórica e prática do professor da Universidad Central de Quito, Luiz Campos Martínez. Percebendo o fraco resultado dos alunos na apreciação artística e temática dos filmes, Martínez decidiu realizar a experiência de reunir crianças de diversas classes socioeconômicas em projeções cinematográficas em escolas católicas, seguidas de diversos estímulos para o diálogo e a criação artística a partir dos filmes vistos. O projeto incorporava ideias que Antoine Vallet apresentou no livro “Du Cine-club au langage total” (Vallet, 1968), levando em conta as diferenças e devidamente adaptadas ao contexto latino americano.

A experiência de Martinez teve excelentes resultados e foi incorporada pela SAL-OCIC (Secretariado para a América Latina da Organização Católica Internacional de Cinema), com vistas a implanta-la em países da América Latina com o nome de PLAN DENI (Plano de Niños). Inicialmente, além do Equador, o Plan Deni se fixou no Peru, Uruguai, Brasil e República Dominicana, em seguida no Paraguai e Bolívia. O fundamental nesse trabalho era apresentar às crianças e jovens a linguagem cinematográfica e seus recursos técnicos para a formação de sentidos, buscando uma educação para a leitura de imagem desde a infância.

O Cineduc faz, então, parte de um programa para contribuir no processo educativo transformador através do desenvolvimento da consciência crítica, da descolonização do olhar, da reavaliação de temas perpassados por preconceitos, da ética e da expressão criativa.

        A trajetória do Cineduc através desses 50 anos é difícil de ser resumida. Acompanhou as mudanças tecnológicas e comportamentais e vivenciou experiências em todos os estados brasileiros, com todas as classes sociais. Por ser pioneiro no Brasil na área de cinema e educação, o Cineduc enfrentou alguns desafios e muita solidão no que concerne ao desenvolvimento do pensamento e na criação e avaliação das suas ações. No começo dos anos 1970 poucos tinham o entendimento do que o cinema oferecia em termos de formação do caráter e do gosto estético, e sobretudo a relação política entre estética e ética. A academia ainda não se preocupava com esse tema, o cinema entrava nas escolas apenas como substituto para professores faltosos ou ilustração de matérias da grade curricular.

Nos cinemas comerciais, as ofertas de programação infantil eram poucas e restritas à produção americana. O mesmo acontecia com a televisão, onde, além de obras americanas, começavam a chegar as japonesas, o que gerou algumas mudanças no gosto das crianças.

Para ter uma ação efetiva, o Cineduc começou a penetrar em várias áreas relacionadas ao cinema: na formação, com cursos e oficinas para alunos e para os professores; na produção e difusão de conhecimento, com pesquisa, documentação, publicações, consultorias, produção de filmes, programas de TV e participação em seminários e mesas redondas; e na exibição, com programações em centros culturais, curadorias e realização de festivais internacionais.

O pensamento teórico do Cineduc foi desenvolvido de forma eclética, já que as pessoas que trabalhavam e discutiam ações e seus porquês tinham formações diversas: eram professores, arte-educadores, cientistas sociais, filósofos, psicólogos e alguns membros eram formados em comunicação social (jornalismo e cinema). Para harmonizar esses saberes e fazê-los convergir para uma atuação com os resultados desejados, foram necessárias muitas discussões e trocas de informações, muita leitura diversificada, mas que seguia um rumo para os teóricos da linguagem, da psicanálise, da educação, da filosofia e, mais especificamente, do cinema.

 

 

O que é, afinal, educar?

         Desde a antiguidade, passando pelos grandes teóricos da idade média, como Comenius, chegando aos mais recentes filósofos e psicólogos da Educação, a finalidade do ato de educar é mediar a conquista do autoconhecimento e da emancipação, da criação de seus próprios pensamentos e entendimentos, a autonomia de compreender o mundo e buscar seus próprios caminhos. Só através de uma educação abrangente se pode chegar a esse fim. Portanto, a escola não deveria abarcar somente os conhecimentos objetivos, técnicos ou científicos, como se faz no mais das vezes, até mesmo relegando a segundo plano os estudos das humanidades, as reflexões sobre a qualidade da existência humana. É preciso também estimular as leituras e compreensão de outras formas de expressão criadas para dar conta desse universo que é a mente – ou alma – humana. As formas artísticas, poéticas, que lidam com a subjetividade, com o simbólico, a representação, o caótico, sem função imediata que não a fruição e a identificação, é que podem provocar, sacudir o pensamento, trazer novas dimensões ao entendimento de si mesmo e da alteridade. Afinal, como diz Bartolomeu Campos de Queirós, “pela leitura criamos laços e nos aproximamos. Ler é somar-se ao outro, é confrontar-se com a experiência que o outro nos certifica”. (Queirós, 2013, p. 19)

Importante também é ampliarmos o entendimento do conceito de “leitura” para além da escritura da língua. Ler é decodificar, perceber, interpretar. É uma atividade que nos permite aperfeiçoar a nossa própria expressão, a partir do exercício diário de cada uma das linguagens presentes no nosso cotidiano. E atualmente, quando podemos ter, compartilhando a mesma tela, uma variedade de “falas” – textos escritos, fotos, desenhos, filmes, falas, músicas, ruídos (inclusive a diagramação, as expressões faciais e corporais) – precisamos ter competências para entender cada uma delas. Cabe sobretudo à escola desenvolver essas competências.

Numa época em que necessidades e desejos são criados e estimulados para favorecer o consumo, a competição é acirrada e medida pelo poder de compra, a inserção dos jovens nos grupos se dá sobretudo pelo uso de produtos, eles podem vir a aceitar acriticamente certos comportamentos. Isso é parte estimulado dentro das escolas pelas interações entre alunos e com professores, no currículo oculto, onde aprendemos a ocupar o nosso espaço na sociedade, seja ele qual for, de comando ou de submissão.

É também através da escola, como Aparelho Ideológico de Estado, que se dá a reprodução do status quo. O cineasta Pier Paolo Pasolini propunha que “o novo poder da sociedade consumista, [é] o poder mais centralizador e, portanto, mais essencialmente fascista que a história jamais registrou” (Pasolini, 1990, p. 68). Para o cineasta, o consumismo é a nova escravidão – se opondo totalmente à ideia de emancipação, que deveria ser a finalidade última da educação.

        O filósofo Byung-Chul Ham desenvolve pensamento semelhante trazendo-o para o momento atual, em que além do viés do consumo, existe também a crise do trabalho, com os detentores dos meios de produção buscando a todos custo fragilizar as relações trabalhistas e tentando transformar a mão-de-obra em “empreendedorismo”.

        Com o advento da internet e da facilidade de se obter informação, não foram poucos os que acreditaram que a mediação do professor e da escola já não tinha tanto sentido como anteriormente. Mas o que estamos vendo é justamente o contrário, uma massa de informações tão grande, que fica difícil organizá-la na mente, sem falar nos erros e mentiras voluntariamente criadas para confundir. Ham coloca que “a hiperinformação e hipercomunicação gera precisamente a falta de verdade, sim, a falta de ser. Mais informação e mais comunicação não afastam a fundamental falta de precisão do todo. Pelo contrário, intensifica-a ainda mais”. (Ham, 2019, p. 25). Só com uma mediação questionadora, provocadora, essa fragmentação pode ser organizada criativamente, a favor da reflexão, da inventividade e, aí sim, da emancipação.

 

Pensando e agindo

 

Desde o início da minha participação, levei para o grupo as minhas influências mais importantes: Reich, Freud, Althusser, na sua leitura de Aparelhos Ideológicos de Estado, Foucault, Saussure e, mais tarde, Bakhtin.

Dos textos que mais me influenciaram na criação de ações está o do professor da USP (Universidade de São Paulo) Alfredo Bosi (1988, p. 65), primeiro na palestra do seminário da Funarte, O Olhar, depois na coletânea que resultou:

A cultura grega, acentuadamente plástica, enlaçava pelos fios da linguagem o ver ao pensar, Eidos, forma ou figura, é termo afim a Idea. (...) O ato de olhar significa um dirigir a mente para um “ato de in-tencionalidade”, um ato de significação que, para Husserl, define a essência dos atos humanos. (...) Os gregos e os romanos helenizados pensaram em duas dimensões axiais do olhar:

·      o olhar receptivo;

·      o olhar ativo.

O olhar receptivo, afirma, apenas recebe estímulos luminosos, necessários ao reconhecer, medir, definir, caracterizar, interpretar, pensar sem intencionalidade. O olhar ativo é o olhar de quem procura, busca captar e analisar. Este último é o que procurei estimular nas ações do Cineduc. Mas como podemos fazer isso? No mesmo texto, o professor Bosi (1988: 82) nos deu a pista: estimulando o uso da atenção, como defendido por Simone Weil e seu mestre Alain: a atenção como atividade superior da mente e princípio estratégico para lutar contra a máquina social.

“É bom ver uma criança acompanhar dia a dia o crescimento de uma planta em suas pequenas e contínuas mutações; ou o crescimento de um animalzinho. Não para ter noções de Botânica ou Zoologia, mas para sair de si mesmo, alegrar-se com uma vida que não é a sua. Observando, assim, a criança consegue transcender o ego e procura escutar e ver sinais da natureza e do outro.” – trecho de Simone Weil citado pela professora Ecléa Bosi – Artigo na Biblioteca de Psicologia da USP – A Atenção em Simone Weil – 2003

Para Simone Weil a atenção é uma forma alta de generosidade. Todas as outras vantagens da instrução são secundárias comparadas ao exercício da atenção: é um bem em si independente de recompensa ou aquisição de informações. Os estudos são nada mais que uma ginástica da atenção, seja qual for seu conteúdo.

Nós, do Cineduc, acreditamos que a dispersão constante, a falta de atenção aos fatos, às mensagens da mídia, aos seus próprios sentimentos e sensações tornam as pessoas apenas receptivas. E acreditamos também que essa forma de “estar no mundo” é socialmente estimulada, sobretudo numa sociedade de consumo e com extrema valorização da tecnologia.

Cada vez mais, na prática diária no Brasil inteiro, percebemos que existe uma desvalorização do pensamento. Nossa sociedade, aí incluindo muitos professores, preza apenas as realizações que tenham materialidade, que resultem em produtos palpáveis, e consideram qualquer reflexão mais aprofundada como “teórica”, e isso para eles quer dizer “sem funcionalidade”. Precisamos entender que essas duas práticas (porque o pensamento é uma prática) não são antagônicas, como apregoa essa coletividade com pensamento dualista, onde acreditam que corpo e mente são entidades opostas, que razão e emoção se contrapõem, que forma e conteúdo podem ser compreendidos separadamente.

Da mesma forma que saber juntar as letras para formar palavras não significa saber interpretar um texto, olhar não significa saber ver. Como toda linguagem, as linguagens visuais possuem elementos óbvios, explícitos, de fácil compreensão, e elementos sutis, semânticos, que são muitas vezes só percebidos pelo subconsciente. Quanto mais atentos estivermos na apreciação de uma obra, melhor percebemos os pontos de vista do autor, seus valores políticos e éticos, mais fácil se torna interpretá-la e julgá-la e, sem dúvida, extraímos dela maior prazer estético.

            No caso da fotografia, da reportagem e do documentário, esse conhecimento se faz ainda mais necessário, pois como são trabalhos captados do real, tendem a ser interpretados como a realidade em si, e não como o resultado do ponto de vista do autor.

Um bom exemplo de uso extremo da atenção para compreender e apreciar uma obra, que é a expressão por vezes mais profunda do outro, é a análise que Freud faz do “Moisés” de Michelangelo no seu ensaio de psicanálise aplicada “El “Moisés” de Miguel Angel” (Freud, 1968 p. 1069), em que descreve minuciosamente cada detalhe da escultura para perceber seus próprios sentimentos, de que maneira ele, Freud, é por ela afetado, para concluir que sua análise não diminui absolutamente o impacto causado pela obra.

Portanto, a leitura atenta e cuidadosa da mídia e do comportamento social é estimulada pelo Cineduc. Não é possível ter uma visão mais acurada do cinema, não é possível ser crítico com o uso da linguagem e das escolhas estéticas de um autor se não pudermos observar se a obra reforça ou questiona preconceitos. E não podemos analisar tais coisas se não estivermos profundamente atentos.

Por outro lado, a atenção é a matéria prima dos autores. O olhar atento do fotógrafo através do visor de sua câmera é que realiza a linguagem, sendo a técnica apenas sua ferramenta.

Sobre o ato de perceber, Pier Paolo Pasolini disse: “existem certos loucos que observam as caras das pessoas e o seu comportamento (...) porque conhecem a semiologia. Sabem que a cultura produz certos códigos; que os códigos produzem certos comportamentos; que o comportamento é uma linguagem; e que num momento histórico em que a linguagem verbal é inteiramente convencional e esterilizada (tecnocratizada) a linguagem do comportamento assume uma importância decisiva.” (Pasolini, 1990, p. 88)

A metodologia do Cineduc se assenta, portanto, desde o início, numa base triangular, ou seja, em três práticas complementares: refletir sobre o cinema e sua história, “ler” atentamente imagens e sons, e criar peças audiovisuais em diversos suportes. Não existe uma ordem de grandeza entre essas ações. Todas são importantes e devem se alternar, criando entre elas uma relação dinâmica e dialógica.

Foram criados exercícios para estimular a percepção sensorial, sobretudo a visual e a auditiva; meios de fazer compreender que um trabalho sobre o real não é o real em si e sim uma representação dele, carregada da visão de mundo do autor para causar uma impressão no espectador; técnicas para expressão do que foi percebido das obras vistas e troca de ideias entre os espectadores; e exercícios para a criação de narrativas visuais e auditivas em diversos suportes, até chegarmos à realização de filmes.

 

 

Olhar sobre a mídia; olhar sobre o mundo

 

            O avanço tecnológico gerou, finalmente, uma certa democratização nos meios de produção de imagens e sons, bem como de sua veiculação e difusão. Digo uma certa porque ainda temos no Brasil e na população mundial uma quantidade enorme de pessoas sem acesso a esses meios. De qualquer forma, devemos refletir que o fato de muitos poderem expressar suas ideias e sentimentos não basta para temos uma real democratização, se o produto conseguido for apenas uma repetição infinita do discurso hegemônico do senso comum. O contato com obras diversificadas suscita maior reflexão, ajuda a ver o mundo de vários pontos de vista, melhora o autoconhecimento e, portanto, propicia um novo discurso.

            Apesar de há mais de 60 anos termos uma crítica sólida e cada vez crescente ao atual currículo escolar e à sua forma de transmissão de conhecimento, a escola continua repetindo não só o discurso como também os atos, configurados como um currículo oculto, reproduzindo o status quo social, que mantém o sistema de privilégios.

Nessa conjuntura, pleiteia-se o uso de filmes e outros meios audiovisuais para dinamizar uma aula que pode ser aborrecida para os alunos. Argumenta-se que os jovens gostam de imagens. Isso é verdade, mas não só para os jovens. Os mais velhos também gostam. Mas como os jovens, não gostam de qualquer imagem. Da mesma forma que todos gostam de música, mas não é comum os jovens gostarem de Verdi. Um professor bem-intencionado levou “Cidadão Kane” para sua sala de aula e ficou chocado porque os alunos detestaram o filme.

Há tempos, tive uma grande surpresa ao desenvolver uma ação para o Ministério da Justiça em uma favela carioca das mais violentas. Tratava-se de projetar filmes para jovens entre 15 e 22 anos que estavam em situação de risco. Nos 12 encontros que tivemos, nenhum tipo de filme despertou qualquer interesse na plateia: curtas de ficção com cunho social, documentários, animações internacionais de longa metragem, confecção de zootrópio e outros aparelhos óticos pré-cinema. No último encontro, desesperançada, coloquei um trecho de “Um homem com uma câmera”, de Dziga Vertov. E foi impressionante: ficaram encantados. Quiseram saber tudo sobre o autor. Aproveitei e coloquei um pequeno videoarte de Bill Viola. Mais sorrisos. Creio que esse foi um dia de descoberta para eles.

O filme não é panaceia para curar a falta de interesse dos alunos em uma aula. Também não o é para tirar os jovens do que chamamos de “alienação” das questões mais amplas da sociedade que interferem diretamente no cotidiano deles, como muitos acreditam ao mencionar o desenvolvimento da consciência crítica. É preciso também estimular a “leitura” do conjunto da sociedade, a percepção da distância entre o que uma coletividade diz e o que ela faz. Por exemplo, fala-se muito em fraternidade e em cooperação, mas age-se a competição. O discurso do Amor é confrontado com as ações do Ódio.

Para fazer avançar a conquista de um gosto estético no cinema, é necessário abrir o leque de opções de filmes, com uma curadoria diversificada em gêneros e culturas, em linguagens e formas. Como também estimular a frequência em equipamentos culturais da cidade, a leitura, a ida a teatro, exposições de arte, shows de música etc. Ver muito, ouvir muito, perceber muito. Não podemos deixar de observar que a cultura do cinema bebeu na fonte da dramaturgia, do folhetim e (bem como a fotografia) da pintura.

            Costumamos frequentemente ver duas posturas opostas no trabalho de realização de filmes em escolas ou projetos sociais: a primeira pleiteia a não interferência de forma alguma no processo, deixando os alunos absolutamente livres para criar suas obras. A segunda quer tomar as rédeas do processo, para tentar garantir um mínimo de qualidade técnica e de “adequação” temática. Na primeira, perde-se a oportunidade de discutir a realização; na segunda, o aluno não é autor. O velho e bom equilíbrio é necessário, mas é também difícil de ser alcançado, pois cada caso é um caso. Outra coisa que observamos é que, tanto em um caso como no outro, existe uma tendência geral a copiar o que é visto na mídia: narrativa das novelas e filmes B hollywoodianos, reportagens, documentários expositivos, enfim, o que existe de mais óbvio e redundante na mídia. Percebemos cada vez mais a tendência a olhar a mídia e olhar pouco o mundo.

No Cineduc, nossa postura é deixar que eles criem, mas questionando cada escolha, seja de roteiro, seja na colocação da câmera na hora da filmagem, seja na fase da montagem, para que o processo de criação seja plenamente consciente e autoral. E recomendamos um olhar mais atento para o cotidiano, não podemos deixar de dizer que a poesia está no mundo. Quando vemos na mídia algo que nos emociona, certamente o autor, ao fazê-lo, viu o mundo com poesia.

O prazer de ver é um mistério. O que nos comove quando estamos diante de uma obra de Van Gogh, de um filme de Wong Kar Wai ou de um pôr do sol no Arpoador? O que nos faz gostar de fotos de Henri Cartier-Bresson?

Costumamos analisar a construção dessas imagens. Equilíbrios das formas, das tonalidades, enquadramento, edição etc. Mas isso não explica muita coisa, porque às vezes ficamos tocados por imagens desequilibradas, sujas, mal iluminadas. Imagens nos tocam de formas diferentes, porque as preenchemos de significados.

Imagens que nos dizem o que já sabemos de forma redundante podem nos causar algum frisson emocional temporário, mas as que ficam e transformam algo em nós, nos dão prazer realmente, são aquelas que provocam surpresa em algum grau, que nos mostram pontos de vista que ainda não tínhamos percebido, que nos levam a outro patamar de reflexão sobre aspectos do mundo.

            Nos nossos cursos para professores ainda é muito comum pedirem algumas fórmulas e receitas, que é algo diametralmente oposto ao fazer criativo. Preferimos nos unir ao pensamento do educador e psicanalista brasileiro Rubem Alves, colocado no texto “A complicada arte de ver” (www.rubemalves.com.br):                                                                                                                      

O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. (...) Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos”...

 

 

  

 

BIBLIOGRAFIA:

 

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https://www.scielo.br/j/pusp/a/PL9Dxj7s9fQxnxZFHvPghRc/?lang=pt#:~:text=É%20bom%20ver%20uma%20criança,que%20não%20é%20a%20sua.

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XAVIER, Ismail, O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008.


FILMOGRAFIA CITADA:

Cidadão Kane – “Citizen Kane”, 1941, filme – direção: Orson Welles, EUA: RKO Radio Pictures
Um homem com uma câmera – “Chelovek s kino-apparatom", 1929, filme – direção: Dziga Vertov, União Soviética: VUFKU

 

WEBGRAFIA:

Texto Rubem Alves: disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u947.shtml visitada em 24/03/2014

Cineduc – Cinema Educação: disponível em www.cineduc.org.br


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